16 janeiro 2007

Dias, noites e vagalumes - I

DIAS, NOITES E VAGALUMES


Ainda não tinha amanhecido.
Podia sentir o cheiro da noite no ar, quando ouvi a voz de Chica que chamava com firme doçura as outras crianças em suas camas.
- Acorda, criançada! O sol já vai nascer e o leite de sol nascido dá dor de barriga... Vamo...vamo...
O primeiro amanhecer na fazenda era sempre um momento mágico na minha vida tão nova, de uns oito ou nove anos. Amava estar naquele lugar. Sentindo aqueles cheiros.
Na penumbra quebrada apenas pela luz tênue da lamparina que trazia nas mãos, ela viu meus olhos brilhando já acordados e ansiosos pelo dia que chegava.
- Bons dias, menina! - sorriu – Luzia disse que ocês chegaram ontem à noite. Fez boa viagem, fez?
- Hum-hum...
Eram sete camas do tipo “patente” no quarto imenso. Colchas de chita estampada, cortina de crochê no janelão, o guarda-roupas de canela-imbúia entalhada com um espelho oval na porta manchado com algumas formas estranhas, como se tivesse gravado as imagens que nele se refletiram através dos tempos; uma cômoda enorme, cheia de gavetas que lhe fazia conjunto. Em cima dela um vidro de perfume de cristal branco e azul, com bomba de borracha coberta por fina malha de seda e franjas, ao lado de um vaso com copos-de-leite colhidos na tarde anterior.
Aquele quarto das meninas era um lugar acolhedor, onde passávamos boas horas ouvindo “causos” que as mulheres da colônia nos contavam, fazendo as vezes de mucamas, cevando a gente com rosquinhas de nata e bolinhos de chuva. Entre uma história e outra, elas vinham catar piolho ou nos dar aquelas bolas oleosas para acabar com os vermes.
Tinha o pé direito bem alto, forro de ripas finas de madeira, pintado de azul claro. Um grande lampião de gás pendia do teto, preso por uma corrente. Numa das paredes, um quadro de Jesus e o de Maria ao lado, com seus olhos úmidos pelas lágrimas da dor de ter sido a mãe sofredora do filho de Deus. Ambos com os sagrados corações expostos. Na outra parede havia uma politone com um casal austero que eu nunca soube quem eram. Ele de terno, gravata borboleta e chapéu panamá no estilo Santos Dumont, ela de vestido de renda preta, colar de pérolas, anel de ouro no dedo e presilha de marcassita no cabelo, coisas que, eu soube depois, eram pintadas pelos artistas sobre fotos preto e branco de gente simples da roça. Somente ali na moldura foram belos e elegantes.
Couros de vaca malhados serviam de tapetes sobre o chão de madeira rústica e os furos nessas peles me intrigavam.
- As vacas morreram de tiro, que nem as raposinhas que o Jacózinho matou aquela vez lá no galinheiro, Chica?
- Não fia, isso num é tiro, não. É berne. São essas moscas berneiras, essas verdes grandonas. – explicava a velha negra enquanto nos tirava da cama.
- Argh!! Morro de medo delas... dessas varejeiras... – disse eu com cara de nojo – minha mãe sempre diz que tem uma mosca verde me vigiando, pra eu não fazer arte, e que conta tudo pra ela.
- Elas são muito marditas. Botam berne até em gente. O fio do Jacinto tava com três nas costas. Menino novinho, quase morreu sem sangue. Só tira com toicinho bem gordo. – explicou abrindo as janelas para a escuridão - Vamo meninada, o sol já vai nascer. ‘Bora pro curral, vamo...
Fui me trocando ainda impressionada com a história das moscas, mal sabia eu que não são as berneiras que depositam os ovos na pele dos bichos, elas depositam nas outras moscas, as caseiras e quando essas “inofensivas” pousam, as larvas se ajeitam na pele. - Mosca safada, enganadora e fofoqueira.
Éramos seis meninas, primas e irmãs. Passávamos todas as férias juntas. Delas eu não sei, mas para mim eram dias no paraíso.
Logo estávamos caminhando pela campina em direção ao curral, seguindo caladas a velha Chica que ia cantando uma modinha de viola:

“Que saudade das mangueiras
Do clarão do meu luar
E das lindas cachoeiras
Com suas águas a rolar
Na madrugada tão linda
Ouve-se o galo cantar
Pula o caboclo da cama
E começa a trabaiá

Ai, ai, ai, ai, nem quero olhar pra trás
Hum, hum, adeus Minas Gerais...”

A gente repetia o refrão, feliz da vida, cheia de sono, com a brisa da madrugada refrescando o rosto. Cada uma tinha na mão sua caneca de ágata.
(continua abaixo)

Dias, noites e vagalumes - II

Parte II
No curral as vacas estavam sendo ordenhadas pelos colonos, Canivete entre eles. Canivete era o colono que mais cuidava da gente. Menino novo ainda, fazia de tudo por nós.
- Bons dias, menininhas!!! - diziam com educação sincera.
- Bons dias – respondíamos em alvoroço desencontrado.
- Eu quero o leite da malhada de marrom
- Eu quero o da preta.
- Eu também...
- Quero o da mocha – dizia eu.

Cada uma escolhia sua vaquinha, nem sei bem por qual critério.
O leite caía espumando dentro da caneca, direto da teta, espirrando. Eu bebia, quente ainda, com um sabor de capim, que o só o leite fresco tem.
Parecia fácil ordenhar. Quando ia tentar toda lampeira, não saía gota sequer. A danada da mocha se fazia de rogada e negava o alimento para as mãos inábeis. Eu ria. Canivete, paciente, enchia a caneca novamente e lá íamos nós de volta para casa comer pão sovado quentinho com manteiga nova, na enorme mesa na varanda, sob o aroma do café recém coado, dentro do bule, ao pé do fogão. O único horror do amanhecer era ter que chupar um ovo cru, de galinha ou pata, direto de sua casca, no máximo com uma pitada de sal. Coisas para deixar criança forte.

O sol logo surgia, fresco ainda, mas já prenunciando o escaldante calor com que nos brindaria no decorrer do dia.
- É uma bola de fogo trazida por Apolo em sua carruagem – dizia minha mãe.
E eu me desfazia em enlevo e magnitude, quase podendo ver o deus grego em sua missão diária e infalível. Coisa para um deus mesmo.
Os dias na fazenda nunca eram iguais. Cada um trazia uma novidade, uma lida diferente. Tínhamos horas e mais horas para dar vazão à nossa criatividade e energia. Era o dia inteiro aprontando.
Os adultos sempre cuidavam de manter as crianças ocupadas.
- Trabalho de criança é pouco, mas quem não usa é louco – dizia a velha Chica.
Na verdade eu me sentia muito importante por ter cargo e missão naquela casa. Vivia rondando pra ver se me davam algo a fazer. Podia ser qualquer coisa, de varrer o chão a ajudar fazer sabão.
Luzia me dava uma agulha e me ensinava com paciência a furar as bolhinhas de ar das lingüiças que estavam sendo feitas pelas mulheres, depois da matança de uma ou duas leitoas. Eu ficava por lá furando as tripas e ouvindo as conversas.
- O bebé da Ritinha num vingou. Teve mal de sete dias. Num deu tempo nem de batizar. Foi pagãozinho pro limbo.
- Ô tadinha! Mas também aquela menina num come. Veve de luz.
- Hoje tem bailão na roça do Formiga. O Tião vai levar nóis de trator.
No final do dia achava um espetáculo a porção de lingüiças e toicinhos pendurados no fumeiro.
Para fazer o curau e a pamonha que eu tanto adorava, ajudava a ralar a espiga – e os dedos - fazendo verter o suco cremoso do milho verde, depois separava as palhas, enchia os saquinhos, amarrava com barbante e ficava ansiosa esperando cozinhar, comendo quente e lambendo os beiços.
Desbagaçava jaca, descascava tamarindo, separava nata, batia manteiga, enformava queijo.
Só não me deixavam chegar perto da feitura dos doces. Ficava em volta olhando gulosa para os enormes tachos de cobre sobre o fogão de lenha, onde borbulhavam a goiabada cascão com seu perfume quente ou o doce de leite na sua maciez e cor incomparáveis, coisa de dar água na boca.
Podia ajudar a por nas formas, embrulhar na palha, colocar nos potes, mas da feitura não podia participar. Dos tachos voavam gotas fervendo, que onde caíam faziam queimadura feia. Ficava de colher de pau na mão, esperando um cochilo da Chica, mas que nada, a velhota era matreira e não me perdia de vista.
- Não se meta a fazer o que num pode, menina! – ralhava bondosa.
- Mas Chica, queria aprender a fazer, pra fazer na minha casa – resmungava.
- Deixa de teimosia, se eu tô fazendo tudinho procês levarem – ficava orgulhosa de ser a autora das delícias que iriam atravessar fronteiras até São Paulo, a capital que ela não fazia a menor idéia de onde ficava.
(continua abaixo)

Dias, noites e vagalumes - III

Parte III
A fazenda era um lugar perigoso para criança, mas muito mágico. Os adultos viviam de olho na gente. Era cobra que aparecia na varanda: urutu-cruzeiro, caninana, cascavel, jararaca. Escorpião ou aranha que se enfiavam dentro de sapato; morcego que entrava pela janela à noite; até onça pintada circulava por aquelas bandas, ainda cheia de mata virgem na época. Tinha o poço, com suas histórias de morte e os gansos, que davam carreirão furiosos na gente, tentando bicar.
Brincávamos de tudo, o dia todo. Acabava o dia precisando ficar de molho na tina, tirando o cascão de terra. Banho frio, com sabão de coco e bucha. Banho bom.
Minha grande paixão porém eram os cavalos. Nada havia de mais lindo e majestoso do que eles, naquele lugar.
Como era terra de trabalho e produção, todos os cavalos passavam o dia muito ocupados, ora tangendo o gado, ora puxando as carroças que traziam a cana, o milho, o capim para preparar o rolão que ia pros cochos.
Certa vez ganhei um cavalo, seu nome era Farrapo, um baio castanho-claro de crina e rabo quase brancos. Animal dócil, marchador de Minas, andava só no água-choca; até em pelo e sem bridão eu podia montar. Era tranqüilo para uma menina ainda pequena e desajeitada como eu. Nunca me esqueci de seus imensos e confiantes olhos castanhos, com seus cílios claros e longos. Era meu no título de posse apenas. Coisa de tio para agradar menina de cidade grande, porque trabalhava igual a todos os outros e só ao entardecer eu podia vê-lo. Ajudava a escovar, tirava os carrapichos das patas e dos cabelos loiros, subia na cerca e jogava-lhe água pelos flancos, refrescando-o do calor e tirando-lhe as dores dos arreios e do dia de trabalho. Olhava cada pedacinho dele em busca da maldita berne que podia lhe ferir o couro. Oferecia cenoura ou tolete de cana e ele comia em minha mão, enquanto o casqueavam e ferravam.
Quando montava, saía a passear pelo pomar, em volta da casa, na alameda da porteira, pelos pastos e terreiros. Em minha imaginação estávamos, eu e ele, cavalgando para muito longe. Éramos um só corpo, um só espírito.
O casarão ficava um tantinho longe da cidade. Quase hora e meia na velha caminhonete Chevrolet verde e branca. Numa tarde quente e preguiçosa, minha mãe e minhas tias conversavam, enquanto eu admirava os castelos de nuvens que se formavam no céu de um azul impressionante.
- Estava pensando em ir até a cidade no sábado – disse minha tia – visitar o povo, levar umas frutas, manteiga e queijo. Que que cês acham?
- É uma idéia ótima – minha mãe concordou – podemos deixar as crianças na matinê da tarde com a Luzia, fazemos todas as visitas, almoçamos na sua mãe, fazemos algumas compras.
- Posso tomar sorvete depois do filme? – perguntei toda animada.
- Claro que pode!
- Vou avisar todo mundo – disse ao sair correndo.
Ir para a cidade era sempre uma novidade.

Ao anoitecer, a fazenda adquiria uma outra atmosfera, outros perfumes. Os lampiões traziam sombras aterradoras e um clima de mistério. O céu se bordava de estrelas, podia-se ver a Via Láctea, o Cruzeiro do Sul, as Três Marias, as Sete Chaves do Céu – minha constelação preferida – Marte, Vênus... e ainda buscava pelos “discos voadores”, que estavam em tantos “causos” que me contavam.
Vinha um dos violeiros tocar suas modas chorosas e todo mundo ficava ouvindo, com olhar perdido longe. Contavam estórias maravilhosas de almas penadas, sacis e corujas; falavam dos assuntos da fazenda, uma raposa que tinha matado umas galinhas, um gato do mato que pegara uma rês; fumavam seus cigarros de palha, seus pitos de fumo em rolo, davam uns tragos de uma cachaça cor de mel, que faziam no alambique da colônia e temperavam com madeira sassafrás.
Nas noites quentes o pasto se enchia de vagalumes e os cupinzeiros ficavam como lustres de cristal, cheinhos deles, pousados, piscando.
Naquela noite foi me dando umas idéias.
Assim que os adultos foram jogar truco a leite de pato eu tomei a iniciativa.
- Vamos pegar vagalume! – instruí.
- Eu sei onde tem vidro com tampa! – disse Mirela
- Caixa de sapato também serve? – perguntou Pirulito.
- Nos cupinzeiros é bem facinho - falou Canivete.
Foi missão fácil, eles estavam aos milhares. Tornou-se uma competição. Um queria pegar mais que o outro. Em pouco tempo tínhamos vários vidros cheios. Fiz uns furinhos nas tampas, para que não morressem sem ar.
- Bota uns capim pra eles comerem – sugeriu Aninha.
- É melhor botá água também – completou Zé Maria
- Não!! Água apaga a luzinha deles. – gritou uma das primas, apavorada.
Ficávamos todos na dúvida.
- Será? Por isso eles não voam na chuva?
- Claro! A luzinha é quente. Se a gente rela o dedo queima que nem fogo.
- Credo!
- Num queima, não, suas tontas. Vagalume num é taturana.
Em todo caso, ninguém relava neles.
- Pra que tanto vagalume? – quis saber a Noca.
- Nada, não. Só uma idéia que eu tive. Vamos guardar.
Passamos pela sala com os vidros escondidos sob as roupas, sem dar pio.
(continua abaixo)

Dias, noites e vagalumes - IV

Parte IV
No sábado pela manhã, depois do ritual do leite no curral, nos arrumaram e enfeitaram, vestido de roda, laço de fita, sapato e meia, escovinha nas unhas pra tirar o barro das brincadeiras diárias na lama, Seiva de Alfazema nos cabelos e lá fomos todos pra cidade, na caçamba da caminhonete, que pulava feito cabrita nos buracos da longa estrada, levantando terra pra todo lado.
Tive o cuidado de guardar todos os vidros dentro de duas caixas de sapato.
A cidade era pequena, com suas casas coloridas de grandes varandas, encimadas por primaveras de várias cores. A igreja Dom Bosco e sua praça com a fonte luminosa, o grande colégio salesiano. Havia sempre uma sensação de lar, quando eu revia aquelas ruas.
- Chegamos!! – avisou minha tia – Pulem! Vamos ver a vó Maria.
- Nós não vamos na matinê? – perguntei
- Vão sim, mas é só de tarde, logo depois do almoço.
- Humm...
Entramos na casa da vó e eu fui guardar as caixas no quarto da Nãna, babá de toda a família por mais de quatro gerações. Ranzinza como só ela sabia ser.
- Que que cê tá aprontando, menina??? – grunhia – sua vó me mata se sujar a casa, heim?
- Nada – beijei seu rosto enrugado – só uma idéia iluminada.
Aproveitei o reboliço dos beijos e abraços, chamei uma das meninas e fomos correndo no bar do Mário conseguir uns sacos de papel. Com alguns tostões compramos maria-mole de coco queimado e docinhos de abóbora. Comemos depressa, para ninguém ver, senão vinha bronca; mas sempre tem um dedo-duro...
- Mãe!!! Elas tão comendo mariola!! - choramingou a chata da Marcinha, a prima mais nova.
- Mas quem deu ordem??? - o almoço tá indo pra mesa – quem não comer tudinho não vai na matinê. Raspando o prato, heim?
Fuzilei a pequena marocas, mostrando-lhe o punho fechado. Ela saiu correndo para as tias contando a ameaça e eu com cara de santa, disfarçando.
Fui para o quarto e coloquei dois vidros em cada saquinho de pão. Chamei minha irmã, duas primas e o Canivete, que tinha sido convidado para passar o dia na cidade conosco. Oportunidade rara de sair da fazenda. Tava todo arrumado, passou até Gumex no cabelo.
- Cada uma vai levar um saquinho desses para o cinema.
- Pra que? - quis saber a Nanda.
- Depois eu explico.
- Você e eu levamos dois, Cani – e entreguei os dele.
Nos levaram para o cinema.

Na década de sessenta os filmes chegavam na cidade com muitos meses de atraso. Eram poucas as sessões semanais. Uma matinê no sábado à tarde, outra no domingo pela manhã e as duas sessões de gala à noite, nos dois dias. Antes do filme havia alguma encenação teatral. Podia ser um cantor da cidade cantando músicas de ídolos da bossa-nova que nunca iriam até lá, um solilóquio de Shakespeare ou Tenesse Willams, moderno e arrojado para a época. O cinema era um ponto de encontro, com poltronas marcadas para as autoridades: prefeito, primeira-dama, delegado, padre, médicos, advogados, comerciantes e fazendeiros ricos.
O filme nessa tarde era o Professor Aloprado, do Jerry Lewis e o cinema estava cheio. Tinha gente sentada até nos corredores. Ele era sem dúvida o melhor comediante daqueles dias.
Apagaram as luzes, antes de começar o filme passou o cine-jornal do Primo Carbonari e a criançada gritando impaciente.
- Começa! Começa! Começa!
Só sossegaram quando passou um desenho mudo do Gato Felix, seguido de um episódio sépia de Flash Gordon.
Finalmente o filme. Muitas gargalhadas. Bagunça. Criança batendo o pé. Correndo. Mãe brigando com filho. Pai dando uns petelecos para amansar os capetinhas que endoidavam no escuro. Uma balbúrdia.
Com meia hora de filme, tomei a decisão.
Parte IV

- Vamos abrir os vidros e soltar agora... – sussurrei.
- Todos?? – perguntou incrédulo o pobre Canivete.
- Todos! Abre o vidro e faz eles saírem. – expliquei – depois deixem os vidros rolarem pelo chão até lá embaixo.
Fomos abrindo. Os besourinhos começaram a alçar vôo, um tanto tímidos de início, assustados por terem ficado presos.
Logo, no escuro do cinema a bioluminescência começou a fazer efeito e eles começaram a se comunicar uns com os outros. Eram centenas, milhares talvez, isso eu nunca pude saber.
Ficaram voando por toda a platéia, pousando aqui e acolá. Tinha vagalume por todos os lados.
Primeiro começou um zum-zum, depois os comentários foram aumentando. Por fim começou uma gritaria histérica, as crianças em pé nas poltronas tentando pegá-los. Mulheres e mocinhas com medo dos insetos luminosos. O delegado tentando fazer valer a sua autoridade. O padre se persignando. Uma catarse geral.
Havia na minha frente uma senhora elegante, de cabelos loiros, arrumados num penteado que mais lembrava um panetone. O cabelo todo desfiado, ajeitado com laquê, tornou-se uma armadilha feroz. Um dos pirilampos enroscou-se naquilo, foi se infiltrando lá por dentro, numa fuga desesperada. Pôs-se a piscar em sua prisão, iluminando os cabelos da mulher num tom esverdeado néon. Uma visão surrealista. Quanto mais piscava chamando outros, mais vagalumes se aproximavam e grudavam no laquê.
- Olha a cabeça dela, parece uma árvore de Natal!!! – gritou um menino.
Ninguém sabia o que fazer. Geraldo, o lanterninha corria de um lado para o outro, atarantado.
As luzes do cinema se acenderam, pararam a exibição do filme.
A criançada retomou o coro:
- Começa! Começa! Começa!
Abriram cortinas e passaram pelo menos quinze minutos espantando vagalume pra fora. Tentativa inglória, diga-se aqui.
- Traz uma bomba de flit!! – alguém gritou
- Não!! Não!! Não vão matar os vagalumes – retrucou uma outra senhora muito brava – vamos por eles para fora.
Era um tal de espantar com lenço, xale, leque. Qualquer coisa que ajudasse os besourinhos a fugir lá de dentro. E nós todos ajudando também, para evitar desconfianças.
Não houve jeito. O filme voltou, as luzes se foram e assistimos até o final com uma porção deles piscando alternadamente, deixando mais alegre a matinê.

Os vagalumes foram assunto na cidade por dias. Deu no Correio, na rádio Alvorada, o padre Rebouças falou no sermão, comentava-se nos bares, no clube e na Esquina do Pecado. O delegado ficou ensandecido querendo descobrir o autor da façanha. Nós também comentávamos o assunto, mas sabíamos que seria temeroso contarmos a verdade. Nunca podíamos prever as reações dos adultos.
Havia um pacto silencioso entre nós e nosso segredo ficou bem guardado.
Voltei à rotina tranqüila das minhas férias rurais. Sempre inventando arte e me divertindo junto com as outras crianças.
Quando a noite caía na fazenda eu queria ouvir mais histórias. Os pirilampos apareciam aos milhares, eu brincava com as outras crianças e dizia:
- Vamos catar vagalumes???
Elas me olhavam cúmplices e riam.