26 dezembro 2006

Novidades na Imprensa

Diário Digital
Pintora brasileira assegura próxima novela em Portugal
Jornal de Notícias - 22 dez. 2006
Uma pintora brasileira, de São Paulo, Cristina Ruiz venceu o concurso de guiões de telenovelas em Portugal, organizado pela Script Makers , empresa de Rui ...
Pintora brasileira será autora de próxima novela em Portugal Diário Digital
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Brasileira vence concurso para autor de novela em Portugal
Agência Lusa - 13 dez. 2006
São Paulo, 12 Dez (Lusa) - A artista plástica brasileira Cristina Ruiz, vencedora de concurso da emissora lusa TVI para autores de telenovelas, disse nesta ...

Nebulosa de Estrelas - parte I


Nebulosa de Estrelas - parte I


Chamava-se Lúcia.
Luz, verdade. Sua verdade, porém, era uma mentira.
Morava num bonito apartamento, bem mobiliado, imóvel de valor, lindos quadros, alguns pintados por suas mãos, num bairro que já fora antes nobre e belo como ela. Vida cotidiana, previsível, com certa estabilidade.
O carro era do ano, mas a cama já não rangia mais. Dedicada dona-de-casa, mãe e esposa; só não exercia há tempos o papel da amante, que lhe interessava tanto ainda, mesmo tendo passado há muito dos malditos e estigmatizados “quarenta”. Sabia-se jovem, queria ser seduzida.
Vinte anos antes, era bonita e intrigante. Hoje, vivia a plena desconstrução da esperada felicidade.
Tinha olhos de princesa, cor indefinida entre a turmalina e o topázio; olhar trepidante e iluminado. Olhar guloso.
Corpo “mignon” bem talhado, seios de fartura e firmeza sedutoras, cintura delicada. Sorriso doce e sensual. Casou-se de branco, virgem, plena de sonhos e esperanças, tentando apagar o amor devastador que lhe engolira, em fogo e lágrimas, a juventude.
- O Juca é bonzinho, gosta de mim. É de boa família. Vou ser feliz com ele – dizia sem entusiasmo
- Mas acho que isso não é tudo no casamento, oras!!
- Mas se eu num casar com ele, fico solteira e aí o Paulo vai se sentir o máximo, Rose – disse com raiva do ex – eu não vou dar o gostinho!! Caso com o Juca mesmo e quero que ele morra de dor nos cornos.
- Mas daí a casar sem gostar nem um tiquinho??? Fez bobagem. Isso num vai prestar, Lu. Você é muito fogosa e o Juca é todo paradinho...
Mesmo sem paixão pelo marido, dedicou-se a ser o melhor que podia, foi logo tendo os filhos – um menino e uma menina – tornou-se mãe extremosa, abafando por alguns anos a libido flamejante, em nome dos bons costumes apregoados pela mãe e a sogra religiosas, e bastante frustradas.
O marido, sexualmente não era mesmo dos mais competentes. Ex-estudante de colégio de padres, cheio de senso de pecado, perdera há muito tempo o interesse pela diversão, se é que tivera um dia. Não se animava diante dela nem com o uso de artifícios e artefatos. O dia dele começava antes do sol nascer e terminava num sono de sofá durante a novela das oito. Trabalhando sempre, dia e noite.
Não! À noite roncava o cansaço do dia, mantendo-a acordada, constatando a falta que lhe fazia a metade mais sensual do companheiro. Chorava no banho, impotente e envergonhada pelo que lhe conduzia a solidão e o desejo. Sonhava e fantasiava um retorno à vida. Uma chispa de fervor.
Os dias eram iguais. As noites eram para imaginar.
Queria conhecer a Grécia, mais que tudo. Adorava a mitologia, os deuses, suas lendas e seus amores.
- Um dia vou até a Grécia conhecer o templo de Dionísio – disse, tomando aos golinhos o vinho quente, na quermesse da igreja.
- Dionísio? – perguntou a sogra, que não era lá muito culta.
- O deus do vinho... do prazer... das orgias. – explicou para si mesma, sem atenção à ofendida senhora ao seu lado.
- Credo, que pecado!! Deus só tem o nosso, filha!! Esses outros são invenção do povo. Deus de bebedeira e sem-vergonhice!! Onde já se viu??? Deus tem que ser puro - persignou-se a mãe.
- Tem Afrodite, a deusa do amor... Eros, o do erotismo... Zeus e suas amantes...– mais vinho, suspiros e revolta cristalina – não essa vidinha sem graça da gente.
- Você reclama de barriga cheia, menina. Teu marido é um homem bom, paga as contas, é fiel, te dá de um tudo – diziam.
- Nem tudo....nem tudo, minhas senhoras... É fiel por falta de gosto mesmo.
A ela cabia suspirar e resignar.
Naquela noite sonhou um longo sonho. Sonho de teor alcoólico elevado; estava nos braços do deus grego, que a amava sobre folhas de videira. Muito vinho, odores, sabores e amores.

Os anos lhe tiraram os filhos, mas lhe trouxeram centímetros e quilos extras pelo corpo. Síndrome do ninho vazio tratada diariamente com muito chocolate e coca light.
Nada acontecia pra chacoalhar a vida, ano após ano.
Quis morrer. Mas não quis muito assim, não de verdade. Quis morrer só um pouquinho, pra ver se alguém se importava. Procurou ajuda.
- CVV, Paulo Rocha, boa tarde. Como posso ajudar?
- Paulo???
- Sim, senhora! Como é o seu nome? Posso ajudá-la?- Lúcia. Sim...é... não sei... eu estou me sentindo triste... acabou o zooloft – lembrava-se do seu Paulo. Mas claro que não podia ser, pensava, meio tonta.
- Sim, senhora, zooloft. Quem está em casa com a senhora?
- Ninguém... Eu pensei que seria melhor não precisar mais viver...
- Sempre vale a pena viver. Nada é tão ruim que mereça ser esquecido.
- Hum...mas... nem sei pra que estou por aqui
- Tente lembrar-se de algo muito bom, que a deixou muito feliz ultimamente?
- Ultimamente? Há quantos anos? Os filhos....
- Ahhh! Tem filhos? Qual a idade deles? Como se chamam?
- É...tenho... 23 e 21... Gabriel e Clarinha... mas têm a vidinha deles.
Preciso desligar! O feijão está queimando...
- Me liga depois, Lúcia. Paulo... Rocha.
“Paulo...Paulo...”
Passou a ligar todos os dias. Chamava por Paulo. O rapaz sempre solícito. Tinha uma voz linda.
- Oi, é a Lúcia... do zooloft...
- Que bom que ligou, Lúcia! Gosto muito de falar com você. – dizia o voluntário tentando mantê-la racional e longe de cometer tolices. Era carinhoso e solidário.
- Também, Paulo... Sinto sua falta...
- Sua voz está mais alegre hoje. Você deve ser uma mulher muito especial... Deve ser bonita – dizia, tentando subir-lhe a auto-estima.
Subiu-lhe a sensibilidade.
Apaixonou-se perdidamente por um Paulo que idealizou do profundo de sua carência.
As conversas seguiam diárias. Já não queria mais morrer.
Uma tarde arrumou-se bonita e foi até a o endereço do CVV, descoberto com muito custo. Perguntou por Paulo Rocha. Apontaram o rapaz.
Moreno. Não muito alto e meio gorducho. Cabelo curtinho, nariz batatudo. Pele estragada pela acne. Bem feinho.
Esperou que saísse para o cafezinho e aproximou-se.
- Paulo?
- Sim... – e sorriu seus dentes irregulares e nicotinados.
- Lúcia... do zooloft...
- Oi, Lúcia!!! Que surpresa... Nunca pensei.... Co-como me achou?? O que a senhora deseja???
“Senhora! Senhora! Senhora! - Desmoronou toda a sua idealização.
Desejo? O que eu desejo???” – Sentiu-se tola com certeza.
- Gostaria de ser voluntária... ajudar as pessoas. É isso! – respondeu sem pensar, mas precisando sentir-se menos constrangida. – fiz três anos de psicologia, mentiu.
- Ahhhhh....que bom!!! – respondeu o rapaz um tanto aliviado - Vamos lá dentro acertar tudo com Dª Cleonice.
Como era fim de ano, tinha muita gente desesperada e muitas ligações ao mesmo tempo. Sentaram-na num posto do tele-marketing e lá foi ela conversar com as pessoas.
Seu batismo de fogo foi uma mulher surtada, completamente drogada com muito anti-depressivo.
- Alô, alô!!! Meu Deus, eu preciso de ajuda. Não consigo atingir o orgasmo nunca!! Estou desesperada. Tenho certeza que o marido da minha melhor amiga roubou minha sensibilidade. Éramos namorados há anos atrás e ele me trocou por ela. Mas continuamos amigas...Ela não teve culpa. O cafajeste era ele. E eu fiquei sem meus orgasmos. Todas as sensações se foram com ele.... Eu...eu...eu sei... Só vai voltar se ele me devolver... O que que eu faço??? Ele me chama de louca...Se ele não me devolver eu me mato!!!!
- Não, minha amiga, pode ter seus prazeres, que o marido da sua amiga nunca mais vai saber o que é isso. Dê-lhe o troco à altura.
- É...
Conversou...contornou a situação. Ajudou...
- Meus parabéns, moça!
- Obrigada, Dª Cleonice – tenho muita experiência sexual – mentiu, satisfeita.
Gostaram de seu trabalho.
E lá ia ela, duas vezes por semana fazer seu trabalho sério, psicológico, cheio de responsabilidade. Ajudar pessoas a se sentirem mais felizes, aliviarem suas dores e necessidades de afeto. Ouvia problemas de todos os naipes.
- Meu marido me deixou e foi-se embora com o mecânico!! Vou matá-lo esta noite!!

- Tenho medo de tudo. Até de tomar banho. Não saio mais de casa... Tenho medo de gente...Tenho medo de dormir...medo do escuro...

- Perdi todo o meu salário no bingo. Não tenho nem para comer. Faz dias que só como pipoca...

- Dei todo o meu salário para a igreja. Precisava comprar um milagre. Estava pagando um carnê, mas não estava adiantando. Me disseram que se fosse à vista... Mas não aconteceu nada ainda...Acha que me enganaram??

- Sou sozinha, não tenho dinheiro, ninguém se importa comigo. Nada vale a pena. Minha aposentadoria é pouca e eu devo tudo no cartão de crédito da terceira idade.

Todas as nuances possíveis e inimagináveis da podridão e da miséria humana.
Achou que seria de grande valia ler livros de psicologia, auto-ajuda, tarô, kardecismo, neurolingüística, Paulo Coelho, fitoterapia e orientação sexual. Foi se instruindo. Sabia tudo sobre chás. Conhecia umas quinze dietas. Sua auto-estima foi subindo junto com os termômetros, por causa do verão que se avizinhava. Resolveu aprender dança do ventre. Fez um curso de “strip-tease”. Foi fazer yôga e começou a comprar lingeries e produtos de beleza.
Em casa, nem o marido nem os filhos perceberam essa pequena, mas profunda mudança. A evolução do querer para o poder.
Foi então que aconteceu o incidente que a fez renascer.
(continua abaixo...)

Nebulosa de Estrelas - parte II (final)

Nebulosa de Estrelas - parte II (final)
Numa tarde de trabalho voluntário, Valdete era a sua vizinha de posto. Quando ela se levantou para ir ao banheiro, deixou cair uma revista de fotos de posições sexuais.
- Valdeeeeeete!!! - arregalou os olhos - O que é isso???
- Shhhhiiiiiuuu!!! Calma – disse guardando rapidamente – Depois explico. Se souberem aqui, me expulsam.
Ficou agitada e curiosa.
Durante o cafezinho, Valdete, mostrou-lhe a revista. Além das centenas de fotos eróticas, tinha depoimentos reais de experiências sexuais, entrevistas com sexólogos, opinião de homens e mulheres. Um tratado sobre os prazeres do sexo. Valdete então, pôs-se a elogiar a sua maneira de atender as pessoas, sua delicadeza e atenção, deixando-a confortável e agradecida. Falou sobre o caso do orgasmo. Ela contou um pouco da vida, das frustrações, enquanto comia biscoitos light. Sem muitos rodeios, a amiga lhe propôs um posto como atendente num tele-sexo. Trabalhava nisso há cinco anos.
-É trabalho sério e honesto – explicou – lá também ajudamos pessoas com problemas. E o salário é ótimo.
Ela cismou. Ponderou. Analisou. E aceitou.
Se rebatizou Graciela e remoçou vinte e dois anos. Sua voz tornou-se mais sensual, um tantinho rouca. Um leve sotaque espanhol, treinado nos programas da TV a cabo. Encheu-se de suspiros e ais. Risinhos e gemidos.
A mudança física também se deu. Cortou os cabelos, fez luzes, foi malhar, emagreceu. Usava Channel n° 5 e passava batom vermelho com bastante gloss, para encarnar a personagem.
Baton, a poderosa arma que a transformava de mulher sem graça e simples em fêmea pronta para dominar o mundo e o que dele viesse.
Qual a estranha relação das mulheres com o batom?
Trabalhava cinco horas, todos os dias.
Falava com três, cinco, dez pessoas por tarde. Homens e mulheres. Jovens e idosos. Podia exacerbar a libido. Externava seus sonhos mais proibidos. Sussurrava fantasias. Transgrediu. Desabrochou.
Sexo outra vez!! Direito ao gozo e ao prazer. Podia ser mais feliz que todos os clientes. Estava se ajudando. Revivendo. Apaixonada.
No carro, final da tarde dizia em voz alta para si mesma e para Deus: ... por pensamentos, palavras, atos e omissões, por minha culpa, minha tão grande culpa... Perdoai-me, Senhor!! Ocultava providencialmente o “...não quero mais pecar.”
Recobrou o sentido da vida, numa paralela cheia de emoções. Numa nebulosa de estrelas.
- Hoje não dá, Rose. Tenho compromisso.
- Lu, você nunca pode vir! Que tanto compromisso cê tem? Você está estranha.... É algo que não quer me contar, Lu?
- Impressão sua, amiga! Eu sou a mesma. Te juro!!
O salário do tele-sexo ela guardava todinho na poupança. Não era dinheiro que importava. Isso ela tinha em suficiência. Esse dinheiro lhe trazia independência, é verdade. Dinheiro de marido é sofrido, humilhante. Mas o que lhe importava era a energia criativa do prazer e a alegria orgástica de estar viva.
Suas manhãs tornaram-se mais agitadas. Acordava cedo para caminhar. Dispensou o terapeuta. Foi fazer tai-chi-chuan. Leu o kama-sutra ilustrado. Aprendeu pompoarismo. Dança flamenca. Estudou história grega, egípcia, romana.
Descobriu a origem do baton, na sensualidade da lenda de Afrodite. A púrpura de Tyr. Sangue de ovelhas, misturado a óleos essenciais. Amoras. Vinho mosto. As mulheres da antigüidade já mantinham uma profunda relação com o poder que emanava do ato de colorir os lábios.
Às vezes ainda lhe batia a dúvida sobre estar ou não pecando. O que diriam a mãe e a sogra? Seria apedrejada como adúltera?
Nunca!!! A carne estava intacta. Não eram prazeres da carne. Eram delícias da mente. Eram fantasias. Embora as entranhas lhe tremessem, úmidas.
Foi se libertando do pecado. Foi se afastando do mal. Foi se importando cada vez menos com a indiferença dos seus. Celebrou o matrimônio consigo mesma e transmutou. Libertou-se das leis.
Tornou-se una. Adquiriu brilho e opinião. Passou a questionar os dogmas do cotidiano e deixar pra lá os chiliques dos outros. Caminhava nas nuvens.

Uma noite o marido a enxergou. Estreava uma camisola linda.
- Está diferente, você!
- É...
- Não sei bem o que... cortou o cabelo? – perguntou indeciso.
- Foi...
- Tá mais peituda?
- Não...
- Não sei o que houve, mas que tá diferente, tá!!
- Pode ser...
Virou-se e dormiu. Queria ir para o sonho. Não queria mais encarar a sua realidade insossa.
Tudo o que lhe dava vida e alegria estava do outro lado da linha.
Queria estar envolta nas brumas de sua vida oculta, onde era senhora de seus prazeres.
O marido quedou-se olhando a silhueta de seu corpo na penumbra, estranho e diferente agora. Sentiu-se excluído de alguma forma. O sono roubou-lhe o raciocínio. Depois pensaria nisso.
Não deu tempo.
- Juca! – sussurrou amanhecendo.
- Hum? – sonolento.
- Quero o divórcio! – e riu um risinho de nervoso.
- Que é isso, Lu? Tá delirando, menina? – falou sorrindo. – Brincadeira besta.
- Mas era melhor...
- Gente de bem não se divorcia. – cortou-a – assunto encerrado, mulher.
- Mas a gente mal se fala...
- Esquece. O que os outros vão dizer de mim? Nem pensar...
- Os outros? E eu??
- É! Os outros. Vão achar que não dou conta do recado. Que que tem você?
- E dá conta? – ironizou ela.
- Mulher direita não reclama dessas coisas. Não fica bem.
Sorriu marota, como se tudo não tivesse passado de uma brincadeira. Mas ele ficou olhando para ela de lado, quando ela entrou no banheiro. Não reconhecia a mulher. Algo nela estava diferente.
Olhou-se no espelho cúmplice de si mesma. Esboçou um sorriso que teve algo de maquiavélico.
Ela decidira naquele instante que todas as suas mentiras seriam, a partir de agora, verdades a realizar. Sabia exatamente onde ir buscar a sua luz.
Saiu resoluta, passou no banco, sacou todo o dinheiro da poupança. Um ano delicioso de trabalho. Tinha muito o que fazer naquele dia.
À noite o marido chegou meio ressabiado, tentando alcançá-la dentro de seu novo mundo.
- Estou pensando em comprar um pacote turístico pra Jericoacoara – disse inseguro – segunda lua-de-mel. Que você acha?
Ela o olhou num misto de pena e gratidão.
- Não vai dar, Juca. Vou dar um pulinho na Grécia semana que vem.
E ele soube que era tarde demais.

18 dezembro 2006

Sr. Careca

Não gosto de lugares escuros.
Morava num sobrado grande em São Paulo e nunca ia sozinha até os quartos na parte de cima da casa e muito menos até a cozinha tarde da noite.Era menina miúda ainda quando comecei a ver mais gente à minha volta, do que havia realmente por perto. Gente de cor estranha, meio leve, meio diáfana, que me trazia uma sensação estranha ao estômago e um cheiro às narinas, às vezes como jasmins, às vezes terra molhada, e por aí seguia. Não sentia medo deles, mas uma angústia estranha que dilacerava a garganta. Uma vontade infinita de chorar, às vezes de sorrir, às vezes de falar...Na inocência da minha pequenez, dizia aos adultos que havia mais pessoas ali. Ninguém me dava ouvidos.
- Está de imaginação solta, essa menina – dizia meu pai.- Invencionices de criança – reclamava uma tia- É muito levada da breca – comentava uma vizinha.
Sempre fui criativa e imaginativa, por isso chegava a duvidar de mim mesma. Mas, na certeza, olhava as pessoas de soslaio, como a inocentar-lhes a ignorância.Um dia desenhei numa lousa e descrevi pra minha mãe uma mulher de mãos dadas com um menino.
– Eles usam lençóis - disse - A mulher me diz umas coisas.
- Alma penada - dizia mamãe muito católica e assustada – reza, que some.
- Não! São pessoas que querem conversar. O menino é bonzinho.
- Pois nós não podemos ouvi-los. Nem vê-los. Reza logo!!!
- Podemos sim. Eu posso – afirmava categórica e um tanto infeliz.
Mas a essa altura a minha mãe já tinha me deixado falando sozinha, por falta de argumentos, medo ou impaciência com tais assuntos; nunca soube bem o motivo.À noite, na hora de rezar para dormir, eu insistia em dizer que pessoas cuidavam de mim o tempo todo.Minha mãe cortava o tema, já bastante irritada e meio brava. Dizia alguma jaculatória em voz alta, me beijava e ia dormir. Eu olhava para a figura do Anjo de gesso, iluminado, sobre a porta do meu quarto. Tão indefeso, o pobre...
Fui crescendo e calei sobre o assunto. Chato isso de falar coisas que ninguém queria ouvir.As pessoas estranhas continuavam indo e vindo. N unca os mesmos. Sempre diferentes; de muitas épocas, tamanho, cores e sentimentos variados.Me mandaram estudar num colégio de freiras, já que minha mãe tinha certeza de que a fé seria o fio condutor de uma vida inteira. Já nem me lembrava das histórias de antes ou fingia não me lembrar.Aprendi muitas coisas no colégio, muitos dogmas e preceitos. Descobri a tal fé, coisa um tanto distorcida, pra minha maneira de ser. Era voluntariosa e inquisidora, fazia perguntas proibidas. Achava tudo aquilo tão antiquado e sem sentido.- Por que temos que ficar sem comer para poder comungar?
- Quem garante que Jesus não se casou e não teve filhos?
- Por que quase todos os santos são italianos?
Por aí iam minhas dúvidas e por causa disso sempre fui olhada com reserva por todos no colégio. As estudantes internas não tinham autorização para conversar comigo. O padre vivia me abençoando com o sinal da cruz e me dava as respostas todas iguais:
- Quieta, Ruiz!
Tinha no colégio duas amigas inseparáveis – Suely e Marina - com quem dividia sentimentos, maneiras de pensar e muitas traquinagens. Só não dividíamos os castigos e o estilo das contas bancárias dos pais, porque elas duas eram ricas, mas sabíamos o que era ser a “ovelha negra”, para as freiras francesas, tão cheias de salameleques.Como os meus pais não tinham muito dinheiro, nada me facilitava a vida no colégio. Detestava matemática e odiava a Dª Odete, professora rude e mal-humorada; solteirona, que me fazia acreditar que a matemática tinha sido inventada pelos gregos só pra torturar a gente. Todo final de ano ficava de segunda época precisando tirar nada menos que dez. Às vezes passava de ano, às vezes não. Amava história geral e a professora, Dª Letícia. Gostava de português. Mas o que eu mais gostava mesmo era desenhar. Muitas vezes fui pega desenhando em aula e o chão entre a sala de aula e a diretoria já estava patinado, de tantas vezes que tinha que ir até lá tomar umas broncas. Entrava sempre com o olhar firme, disfarçando a timidez e o medo, mas não achava justo ser castigada por fazer algo que vinha lá de dentro e me dava tanto prazer. Eu rebatia as broncas e as freiras chamavam meus pais.
Uma noite, durante uma dessas reuniões de notas e comportamento, da qual eu não podia e nem queria participar, fui caminhar pelo colégio, já mergulhado na penumbra. Ao me aproximar da ala residencial, disse para a noviça que tomava conta da porta da clausura,que estava vendo uma pessoa ali ao lado dela.
- Irmã, tem uma senhora ao seu lado. Ela está usando um xale florido e segurando uma tigela com água. – descrevi com naturalidade.
- Que maluquices estás a dizer tu? - perguntou a freirinha com forte acento gaúcho.
- Ela tá dizendo que o seu pai, que morreu de maleita, tá muito bem e feliz, no céu. Ela diz que ele tá libertando a senhora da promessa que ele fez. A senhora não precisa ser freira, se não tiver vontade.– concluí.
- Quem te disse essas coisas, Ruiz? Como podes saber disso? - falou a coitada quase gritando, aturdida.
- Essa mulher... – disse eu, apontado para o nada que a pobre irmã enxergava. – Acho que é sua avó. - E fui-me embora correndo antes que dessem por minha falta na saleta da reunião.

Na manhã seguinte já fui logo tirada da fila de entrada, enquanto cantava o Hino Nacional.
- A Madre quer falar com você. – avisou-me uma das internas, ressabiada.
Suspirei, resignada, cansada de tanta bronca e fui. Estava apreensiva, mas de consciência limpa. Sabia que não tinha aprontado nenhuma doidice, nem sozinha, nem junto com as amigas.
- Por que inventas tantas estórias? A quem queres assustar? – perguntou a madre – a pobre noviça não dormiu por toda a noite.
A madre não estava brava. Indecisa entre incrédula e assustada, talvez por ter que tratar de um assunto que não dominava.
- Mas eu não inventei, Madre. Eu vi aquela senhora e repeti o que ela dizia – afirmei.
- Preste bastante atenção, Ruiz. A partir de hoje, todas as manhãs, vais confessar com o padre Francisco, antes da primeira aula. Deves lhe contar se vires alguém que não pertence a este mundo, está entendendo?
- Por que ? – perguntei, irreverente. – O padre também vê essa gente estranha?
- Não!!! - persignou-se, aflita - Porquê Deus não quer que a gente fale com quem já morreu, entendeu? É proibido. Só vamos nos encontrar no dia do Juízo Final – disse a freira sem nenhuma convicção. – depois de confessar, faz a tua penitência com fé e comunga com Jesus.
- Todos os dias? - perguntei eu, já aborrecida com aquela história toda.-
Sim!! Isso vai fazer com que você não possa mais ver ninguém. – disse.
Passou a mão docemente na minha cabeça, tentando me dar conforto. Ou confortar-se a si própria, nunca soube bem.
– Agora vai pra aula de matemática. – disse por fim.Levantei-me e quase lhe pedi um castigo, só para não ter que ir para a aula tão detestada.
A partir desse dia fiquei marcada pelas freiras. Não era uma atitude declarada, mas nunca me davam nada interessante para fazer. Nunca fui escolhida a noiva da quadrilha, não era titular no time de voley, por mais que treinasse.
– É muito baixinha – desculpavam-se.
Não tinha papel de destaque na peça de teatro anual, não ficava na fila da frente do coral da Dª Dulce, onde era primeira voz, pois mesmo sendo baixinha pro voley, me escondiam atrás. Não ganhava medalhas na Feira de Ciências. Meu único destaque era levar a culpa de tudo. Tudo!Se havia bagunça na sala de aula num dos intervalos., lá ia eu responder pela balbúrdia. Se saía briga na aula de ginástica, se faziam alguma arte ou molecagem na hora do recreio, lá ia eu de castigo.
Quando já não sabiam mais o que fazer para controlar a minha insolência, inventaram que o castigo agora era ir para um quarto pequeno e escuro, cravado no entremeio de dois andares, num vão de escada., no prédio velho do colégio.
Nesse quarto ficavam guardados antigos troféus dos campeonatos ganhos pela escola. Deviam ser troféus de colocação sem nenhum destaque, 4° lugar ou mais, por que estavam empoeirados nas prateleiras; ninguém lhes dava valor algum. Conviviam na escuridão com figuras de um presépio em tamanho natural, que era montado no pátio da escola, à época do Natal e com uma gravura na parede, de um Anjo Guardião cuidando de duas criancinhas - um menino e uma menina - em busca de uma bola colorida, à beira de um precipício,.Estavam guardadas ali as bandeiras do Brasil, de São Paulo, do Colégio. Juntavam nessa sala todo tipo de velharias que me mantinham distraída, enquanto chorava de raiva por tantos castigos.Mas havia algo mais nesse quarto.Havia um morador bem estranho: um esqueleto humano pendurado num suporte de ferro; era bem antigo e dava pra ver, pelo estado de conservação, que tinha sido usado para aulas de ciências, alguns anos antes, até séculos, talvez.Na primeira vez que o vi, fiquei muito impressionada. Não gostei nada, nada daquilo. Sonhei algumas noites com ele.
Na verdade eu sabia que o que as freiras queriam mesmo, era me assustar, dar um jeito para que eu me tornasse menos problemática. Mais submissa e obediente.Eu ia para esse castigo eventualmente e deixava-me ficar envolta na escuridão, no silêncio do lugar. Não era a melhor coisa do mundo ficar ali, mas eu não podia me deixar vencer por elas. Tinha que mostrar que aqueles castigos não estavam surtindo o efeito desejado.
Eu via o espírito de um homem ao lado do esqueleto. Um homem de uma época bem mais antiga. Esse homem vestia um sobretudo de lã surrado, um chapéu torto e botas enlameadas. Um homem bem triste, que não falava nada, só me olhava . Aquilo me incomodava e eu intuía que ele estava ali por causa de seus ossos, usados para expor suas entranhas e sua magreza mortis. Tomava conta de algo que lhe pertencera, o coitado.Eu o apelidei de Sr. Careca, pela lisura de seu crânio e por que não tinha coragem de lhe dar nome de gente viva.Coloquei-lhe um chapéu na cabeça. Sua feição me impressionava.- De chapéu o senhor fica melhorzinho. Parece mais saudável.Ele concordou.Certa ocasião, por causa de uma briga num jogo de vôlei, do qual eu não estava nem participando, lá fui eu desfrutar da calada companhia do Sr. Careca. Nesse dia, eu estava realmente revoltada com tanta injustiça e cisma por parte das freiras.No tédio do castigo e com a raiva que me aquecia os ânimos e o sangue, tive uma idéia terrivelmente brilhante: resolvi que ia libertar o espírito do Sr. Careca daquela prisão eterna e para isso o esqueleto não poderia mais existir. Não tive dúvidas. Fui pacientemente desmontando toda a ossada, soltando os pequenos arames que prendiam os ossos com um alicatinho que estava perdido por ali, e fui espalhando todos eles pelo quarto, distribuindo dentro das taças inúteis dos mal-sucedidos campeonatos dos Jogos da Primavera.

Não me lembro quanto tempo fiquei nessa tarefa. Mas sei que foi um extremo prazer.Com ironia ainda me dei ao trabalho de verificar se me lembrava dos nomes que havia aprendido nas aulas de ciências: falange, falanginha, falangeta, artelhos, cóccix, externo, malar, maxilar inferior, occipital, côndilo, rótula, fêmur, cúbito, rádio, etc...etc...etc...O crânio encaixei sobre um troféu alado. O chapéu meio de lado. Ficou estranho e elegante.O espírito do homem agora me sorria, um sorriso de alívio e satisfação.Nunca mais fiquei de castigo.Do colégio das freiras, não tenho saudade alguma. A fé, moldei transgênica, ao meu jeito irreverente de ser. A freirinha da clausura deixou o hábito. Do Sr. Careca, nunca mais tive notícias.

13 dezembro 2006

VERMELHO

Amigos, um texto e uma obra minha.
Ambos VERMELHOS.
Estão lá no "Menu do Texto",
esperando sua visita.

07 dezembro 2006

Contos Natalinos (Capa)


"CONTOS NATALINOS" - Editora Atlas, 2006
Coquetel de lançamento dia 15 de dezembro de 2006 (sexta-feira)
a partir das 19h, na Livraria Cultura do Shopping Villa-lobos (SP/SP)
"Vinte e cinco autores, vinte e cinto histórias, vinte e cinco pontos de vista sobre a mais importante das festas cristãs: o NATAL"
Meu conto "Aristóteles, um filósofo..." está neste livro!!!
Venham brindar conosco!

03 dezembro 2006

MANZANA


Verão. Rio de Janeiro. Calor. Muito calor.
Nas noites quentes suavizadas pela brisa fresca que vinha do mar, cheia de perfumes de lugares distantes e histórias por serem contadas, minha mãe nos levava para passear e, invariavelmente, eu acabava brincando na areia fria da praia, imaginando sempre onde ela escondia toda a quentura que a cozinhava durante o dia. O toque macio sob meus pés miúdos me trazia um prazer único. Era algo muito sensual, quase orgástico, embora eu estivesse há uma grande distância dessa consciência, sabia desfrutar aqueles momentos com alegria e ansiava por eles o dia todo.
- Menina, você vai ficar cheia de areia. Volta já aqui! Ô criança desobediente... – gritava uma babá descabelada e ofegante.
E eu corria e brincava. Molhava os pés na espuma das ondas, embora o mar do Rio não fosse marzinho santo, desses de laguna, nem tão afeito a remansos. Vez por outra mandava a onda maior, mais predadora. Daquelas que vem com estrondo, surgindo como um dragão, das profundezas da terra. Uma delas me pegou uma noite e me arrastou mar a dentro. Só me lembro do meu vestidinho rodado, branco de bolas vermelhas, flutuando à minha volta, sobre a água escura, pontilhada de espumas. Tão lindo. Me senti bailarina. Fui agarrada por alguém que me salvou de ir parar na Costa do Marfim boiando no vestido ou pro(fundo) escuro do oceano, nos cabelos da medusa.
Eu tinha pouco mais de cinco anos então, a maior de outras duas meninas. Era esperta, vivaz e tagarela. Numa dessas noites, ao voltar para casa, fui lavar meus pés, ainda brilhantes pelos grãos da areia, que grudavam como brocal. Caí tombo feio. Tombo de banheiro. Dor aguda, cegueira momentânea, um gosto estranho na boca, sensação de vazio. Tudo perdeu a cor. Galo enorme na cabeça.
- Esse galo vai cantar! – alguém brincou, para aliviar.
Na verdade eu não alcançava a gravidade da situação. Só sabia que minha mãe andava triste pelos cantos e preocupada comigo nos dias seguintes. Não sabia ainda, que o que me parecia nada, quase me custaria a vida, poucos meses depois.
Meu pai estava viajando havia muitos dias. Tempo demais. Uma saudade doía em mim mais que o galo. Mais que todo aquele hematoma que me coloriu de tons azuis e amarelos, do peito ao alto da cabeça, assustando todos à minha volta e transformando-me um pouco em Dora Maar – a famosa figura feminina de Picasso com os olhos tortos e cores diversas espalhadas pela face.
Na ausência do meu pai, éramos só mulheres, de vários tamanhos e cores, num pequeno apartamento do Leblon. Gil vinha me fazer companhia. Conhecia-me desde meus primeiros dias. Era vizinho. Foi virando primo. Primo ficou. Um rapazola magrelo e alto, nariz adunco, cabelos escorridos. Riso fácil. Queria me alegrar. Tão amoroso. Me ajeitava sentadinha sobre a carcaça da enceradeira triangular, uma antiga eletrolux sueca, e comigo passeava pela casa, enquanto dava lustro aos tacos caprichosamente encerados por minha mãe. Eu me imaginava viajando por outros países.
- Vamos pra China!! – gritava ele – Agora vamos pra Grécia!!! E corria, zunindo o aparato, que rangia sob meu peso.
- Quero ir pra lua!!! - gritava eu, rindo e indo.
Numa outra aventura mais estranha, Gil capturava cuidadosamente um marimbondo-cavalo, daqueles vermelhos, que zumbem alto e picam muito doído ou uma cigarra bem parruda, que eram muitas no verão carioca; com um longo fio de nylon prendia o inseto à uma caixa de fósforos, deixando que ele voasse agoniado pela sala, balançando a caixa no ar, arrancando-me gargalhadas. E lágrimas. Ele, nos seus dezessete anos, tentava desesperadamente amenizar minhas dores, meus medos e as saudades do meu pai.

Numa manhã quente e muito ensolarada, meu pai chegou de uma longínqua e inimaginável Espanha. Tinha ido passar o Natal com meus avós, que não o viam desde o final da Segunda Guerra. Avós esses que eu nunca conheci. Eram personagens de fotos desfocadas, amareladas pelo tempo, que viviam no meu imaginário, através das histórias que ele me contava sobre suas andanças, que não foram poucas.
Chegou suado, com mais agasalho do que o verão carioca pedia.
Trazia malas, bolsas de couro, caixas e muita saudade. Nunca vou esquecer seu olhar quando me viu transformada num quadro cubista de seu conterrâneo. Disfarçou o quanto pode, acho que pra me apavorar menos.
- Negra, te trouxe coisas. Seus avós e seus tios mandaram presentes pra todas vocês – dizia e beijava-me – Presentes para todas!
Foi abrindo para mim os presentes. Deliciando-se, mais ele do que eu, queria ver minhas reações, queria dar-me toda a Espanha, por não ter podido levar as netas pros avós. Queria me presentear com todas as cores peninsulares.
Foram saindo muitas novidades. Coisas que chegavam de uma Europa um tanto mais sofisticada. Rendas de Valência para minha mãe. Frutinhas de marzipã para minhas irmãs. A sardentinha, dois anos mais nova. Uma espoletinha. E a pequenina gorduchinha, de cabelinhos encaracolados, nem andava ainda. Acho que não deram muita importância para aquilo tudo. Vieram então uma boneca sevilhana linda para cada uma. A minha, com vestido vermelho de cauda, bem cigana, corpo esguio e cabelos negros, enfeitados com uma rosa. Nas mãos delicadas castanholas. Parecia querer dançar. Tinha a certeza que se a pusesse no chão encerado, poderia ouvir seu sapateado. Fiquei encantada. Lindos leques com cenas de alegres dançarinos. Discos das músicas que calavam fundo na alma de meu pai e que ouviríamos por anos a fio. Torrones de amêndoas, cujo sabor especial me perseguiria na longa ausência, numa forte memória degustativa. Enfim, uma alegria tomava conta da casa, depois de alguns dias de apreensão por causa do meu estado. E continuava a farta cornucópia de presentes, acompanhada do sorriso feliz dele. Uma farra.
Até que surgiu ela.
Vermelha e brilhante. Imensa. Quase iluminada. Fiquei olhando para a sua forma cordial. Intrigada. Insegura. Não sabia o que era aquilo. Ou melhor, não tinha certeza. Não queria me arriscar.
- Será que quebra? - perguntei.
- É cheirosa... – completei, investigando – Posso pegar? O que é?
- Uma “manzana” – disse em seu sotaque carregado, pondo a língua sob os dentes para falar o Z com som de três esses.
A palavra era sonora. Meio mágica. “Manzana, manzana...” Mansssana??? Olhei interrogativa pra minha mãe.
- Uma maçã!! Uma maçã como a da Branca de Neve. – disse-me carinhosa.
- Envenenada??? - perguntei, afastando-me.
- Não. – riu ele – Uma maçã encantada.
Aquilo bastou para seduzir-me.
Naquele tempo as maçãs que tínhamos por aqui eram raras, pequenas, de pouco vermelho, duras e muito, muito azedas.
Não havia produção nacional satisfatória. Tínhamos frutas várias, deliciosas, nutritivas. Todas nativas. Goiabas vermelhas e brancas, verdolengas, antes que desse bicho. Mangas de muitos sobrenomes – rosa, espada, coquinho, coração-de-boi. Laranja, limão, banana, melancia, tamarindo, que fazia salivar até a alma. Sirigüela, butiá, jaca visguenta, maracujá. Jabuticaba, mexirica e até o horrível jatobá. Mas maçã, não.
E eu ganhara uma maçã. Não, não! Una manzana.
Era única. Só eu tinha uma maçã de verdade. Tão linda e tão grande. A minha maçã viajara. Atravessara o oceano. Nascera muito longe.
Vinham os vizinhos para vê-la. Meu tesouro.
- É uma maçã rubicunda. – explicava eu a todos, imaginando os mais insólitos significados
para a palavra que acabara de aprender.
Eu não a comia. Eu a degustava com os olhos. Cheirava. Ficava sentada olhando para ela. Eu a desenhava e ia, cuidadosamente, molhando o lápis vermelho na língua com a missão de obter o mesmo brilho no papel. Dormia com ela e sonhava com seu sabor. Gil ficou um tequinho enciumado, pois nada mais me interessava, só queria cuidar dela, lhe dar muito lustro com um paninho. Aposentei até a velha enceradeira.
- Vamos cortar em pedaços e comer? – perguntava meu pai.
- Você pode me dar outra depois? – queria saber.
- Você poderá ir buscá-las lá – me acenava ele novamente com a promessa da viagem pra Espanha.
Foram dias de heróica resistência. Até que capitulei. Não tão contrariada como fazia parecer, por que também havia em mim a curiosidade de saber-lhe o gosto, de conhecê-la também por dentro. Mas para isso teria que perdê-la.
É estranho como a memória guardou uma das primeiras decisões difíceis da minha vida. Uma escolha. A primeira de muitas que faria na vida.
Não foi um momento simples. Houve um ritual. Gil teve que estar presente para ver aquilo. Minhas irmãs foram testemunhas do momento em que minha maçã foi imolada.
Do alto do Corcovado, um Cristo, redentor e curioso, entrava pela janela, querendo saber de tudo também.
Com um pequeno canivete de cabo de osso, meu pai foi partindo. Primeiro ao meio, depois nos quartos e por fim nos oitavos. Ao vê-la assim despedaçada, uma lágrima saltou-me dos olhos e meu pai, atento, filosofou:
- Para sabermos o significado da vida, cabe-nos sofrer às vezes. Temos que perder a forma e a beleza, para adquirimos experiência verdadeira. A beleza da maçã está também no seu gosto e só o definimos, depois de provar – disse-me.
Minha mágoa deu lugar ao entendimento. O gosto de choro na garganta deu lugar ao novo. Pedacinhos de polpa macia, cheios de sumo. Sabor surpresa. Inesquecível. Sabor de primeiro beijo.
Perdi a conta de quantas maçãs já passaram por mim depois desse dia, em vários lugares do mundo. Não me lembro particularmente de nenhuma delas. Gosto de maçãs ainda, mas nenhuma delas encerra em si o mistério, o aprendizado e o encanto daquela primeira.
A vida tem dessas coisas.
E é o que a torna fascinante.

01 dezembro 2006

ALQUIMIA NATALINA

pela Assessoria de Imprensa


O livro “Contos Natalinos”, publicado pela Editora Atlas e cujo lançamento se dará no dia 15 de dezembro, às 19h, na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, reúne professores, escritores, roteiristas de cinema, publicidade e televisão.

O livro foi idealizado por Leonardo de Moraes, assessor do governador do Estado de São Paulo Cláudio Lembo e autor do livro “A Caixa de Confeitos & contos sortidos”, publicado pela Ed. Manole na XIX Bienal do Livro. “Esta foi a forma encontrada para reunir 25 ótimos contadores de histórias, que pudessem brindar os leitores com um pouco de seu imaginário, às vésperas do Natal, bem como homenagear os 40 anos de uma instituição séria como o CHESP”, afirma Moraes.

Os direitos autorais do livro serão totalmente revertidos para o Centro dos Hemofílicos do Estado de São Paulo (CHESP). Segundo sua presidente, Maria Cecília Chiocca Magalhães Pinto, “o projeto é de uma delicadeza ímpar, e só vem reafirmar a importância da literatura como um móvel da sociedade, indireta ou diretamente, como no caso desse livro”.

Para Moraes, “em tempos de Internet, escrever não precisa mais ser um trabalho mais tão solitário. Grandes afinidades podem nascer de forma virtual, e tomar corpo em obras consistentes”. No caso de “Contos Natalinos”, alguns dos autores irão se conhecer justamente no dia do lançamento, vindo de diferentes partes do Brasil. “Será a nossa grande comemoração de Natal”, assegura o organizador da obra.

“Essa alquimia é fantástica. Tive o maior prazer em aceitar esse convite”, comenta Solange Castro Neves, autora de telenovelas que trabalhou durante anos na Rede Globo, ao lado de figuras como Ivani Ribeiro e Cassiano Gabus Mendes. “A variedade de enfoques sobre a mesma festa cristã é o grande atrativo deste livro. Falar sobre o Natal foi uma satisfação, e no meu caso, deve ter iluminado meus caminhos”, brinca Cristina Ruiz, escritora e roteirista paulista que também integra a obra e acaba de vencer o “1º Concurso de Talentos ‘Scriptmakers”, organizado pela teledramaturgia de Portugal.