03 dezembro 2006

MANZANA


Verão. Rio de Janeiro. Calor. Muito calor.
Nas noites quentes suavizadas pela brisa fresca que vinha do mar, cheia de perfumes de lugares distantes e histórias por serem contadas, minha mãe nos levava para passear e, invariavelmente, eu acabava brincando na areia fria da praia, imaginando sempre onde ela escondia toda a quentura que a cozinhava durante o dia. O toque macio sob meus pés miúdos me trazia um prazer único. Era algo muito sensual, quase orgástico, embora eu estivesse há uma grande distância dessa consciência, sabia desfrutar aqueles momentos com alegria e ansiava por eles o dia todo.
- Menina, você vai ficar cheia de areia. Volta já aqui! Ô criança desobediente... – gritava uma babá descabelada e ofegante.
E eu corria e brincava. Molhava os pés na espuma das ondas, embora o mar do Rio não fosse marzinho santo, desses de laguna, nem tão afeito a remansos. Vez por outra mandava a onda maior, mais predadora. Daquelas que vem com estrondo, surgindo como um dragão, das profundezas da terra. Uma delas me pegou uma noite e me arrastou mar a dentro. Só me lembro do meu vestidinho rodado, branco de bolas vermelhas, flutuando à minha volta, sobre a água escura, pontilhada de espumas. Tão lindo. Me senti bailarina. Fui agarrada por alguém que me salvou de ir parar na Costa do Marfim boiando no vestido ou pro(fundo) escuro do oceano, nos cabelos da medusa.
Eu tinha pouco mais de cinco anos então, a maior de outras duas meninas. Era esperta, vivaz e tagarela. Numa dessas noites, ao voltar para casa, fui lavar meus pés, ainda brilhantes pelos grãos da areia, que grudavam como brocal. Caí tombo feio. Tombo de banheiro. Dor aguda, cegueira momentânea, um gosto estranho na boca, sensação de vazio. Tudo perdeu a cor. Galo enorme na cabeça.
- Esse galo vai cantar! – alguém brincou, para aliviar.
Na verdade eu não alcançava a gravidade da situação. Só sabia que minha mãe andava triste pelos cantos e preocupada comigo nos dias seguintes. Não sabia ainda, que o que me parecia nada, quase me custaria a vida, poucos meses depois.
Meu pai estava viajando havia muitos dias. Tempo demais. Uma saudade doía em mim mais que o galo. Mais que todo aquele hematoma que me coloriu de tons azuis e amarelos, do peito ao alto da cabeça, assustando todos à minha volta e transformando-me um pouco em Dora Maar – a famosa figura feminina de Picasso com os olhos tortos e cores diversas espalhadas pela face.
Na ausência do meu pai, éramos só mulheres, de vários tamanhos e cores, num pequeno apartamento do Leblon. Gil vinha me fazer companhia. Conhecia-me desde meus primeiros dias. Era vizinho. Foi virando primo. Primo ficou. Um rapazola magrelo e alto, nariz adunco, cabelos escorridos. Riso fácil. Queria me alegrar. Tão amoroso. Me ajeitava sentadinha sobre a carcaça da enceradeira triangular, uma antiga eletrolux sueca, e comigo passeava pela casa, enquanto dava lustro aos tacos caprichosamente encerados por minha mãe. Eu me imaginava viajando por outros países.
- Vamos pra China!! – gritava ele – Agora vamos pra Grécia!!! E corria, zunindo o aparato, que rangia sob meu peso.
- Quero ir pra lua!!! - gritava eu, rindo e indo.
Numa outra aventura mais estranha, Gil capturava cuidadosamente um marimbondo-cavalo, daqueles vermelhos, que zumbem alto e picam muito doído ou uma cigarra bem parruda, que eram muitas no verão carioca; com um longo fio de nylon prendia o inseto à uma caixa de fósforos, deixando que ele voasse agoniado pela sala, balançando a caixa no ar, arrancando-me gargalhadas. E lágrimas. Ele, nos seus dezessete anos, tentava desesperadamente amenizar minhas dores, meus medos e as saudades do meu pai.

Numa manhã quente e muito ensolarada, meu pai chegou de uma longínqua e inimaginável Espanha. Tinha ido passar o Natal com meus avós, que não o viam desde o final da Segunda Guerra. Avós esses que eu nunca conheci. Eram personagens de fotos desfocadas, amareladas pelo tempo, que viviam no meu imaginário, através das histórias que ele me contava sobre suas andanças, que não foram poucas.
Chegou suado, com mais agasalho do que o verão carioca pedia.
Trazia malas, bolsas de couro, caixas e muita saudade. Nunca vou esquecer seu olhar quando me viu transformada num quadro cubista de seu conterrâneo. Disfarçou o quanto pode, acho que pra me apavorar menos.
- Negra, te trouxe coisas. Seus avós e seus tios mandaram presentes pra todas vocês – dizia e beijava-me – Presentes para todas!
Foi abrindo para mim os presentes. Deliciando-se, mais ele do que eu, queria ver minhas reações, queria dar-me toda a Espanha, por não ter podido levar as netas pros avós. Queria me presentear com todas as cores peninsulares.
Foram saindo muitas novidades. Coisas que chegavam de uma Europa um tanto mais sofisticada. Rendas de Valência para minha mãe. Frutinhas de marzipã para minhas irmãs. A sardentinha, dois anos mais nova. Uma espoletinha. E a pequenina gorduchinha, de cabelinhos encaracolados, nem andava ainda. Acho que não deram muita importância para aquilo tudo. Vieram então uma boneca sevilhana linda para cada uma. A minha, com vestido vermelho de cauda, bem cigana, corpo esguio e cabelos negros, enfeitados com uma rosa. Nas mãos delicadas castanholas. Parecia querer dançar. Tinha a certeza que se a pusesse no chão encerado, poderia ouvir seu sapateado. Fiquei encantada. Lindos leques com cenas de alegres dançarinos. Discos das músicas que calavam fundo na alma de meu pai e que ouviríamos por anos a fio. Torrones de amêndoas, cujo sabor especial me perseguiria na longa ausência, numa forte memória degustativa. Enfim, uma alegria tomava conta da casa, depois de alguns dias de apreensão por causa do meu estado. E continuava a farta cornucópia de presentes, acompanhada do sorriso feliz dele. Uma farra.
Até que surgiu ela.
Vermelha e brilhante. Imensa. Quase iluminada. Fiquei olhando para a sua forma cordial. Intrigada. Insegura. Não sabia o que era aquilo. Ou melhor, não tinha certeza. Não queria me arriscar.
- Será que quebra? - perguntei.
- É cheirosa... – completei, investigando – Posso pegar? O que é?
- Uma “manzana” – disse em seu sotaque carregado, pondo a língua sob os dentes para falar o Z com som de três esses.
A palavra era sonora. Meio mágica. “Manzana, manzana...” Mansssana??? Olhei interrogativa pra minha mãe.
- Uma maçã!! Uma maçã como a da Branca de Neve. – disse-me carinhosa.
- Envenenada??? - perguntei, afastando-me.
- Não. – riu ele – Uma maçã encantada.
Aquilo bastou para seduzir-me.
Naquele tempo as maçãs que tínhamos por aqui eram raras, pequenas, de pouco vermelho, duras e muito, muito azedas.
Não havia produção nacional satisfatória. Tínhamos frutas várias, deliciosas, nutritivas. Todas nativas. Goiabas vermelhas e brancas, verdolengas, antes que desse bicho. Mangas de muitos sobrenomes – rosa, espada, coquinho, coração-de-boi. Laranja, limão, banana, melancia, tamarindo, que fazia salivar até a alma. Sirigüela, butiá, jaca visguenta, maracujá. Jabuticaba, mexirica e até o horrível jatobá. Mas maçã, não.
E eu ganhara uma maçã. Não, não! Una manzana.
Era única. Só eu tinha uma maçã de verdade. Tão linda e tão grande. A minha maçã viajara. Atravessara o oceano. Nascera muito longe.
Vinham os vizinhos para vê-la. Meu tesouro.
- É uma maçã rubicunda. – explicava eu a todos, imaginando os mais insólitos significados
para a palavra que acabara de aprender.
Eu não a comia. Eu a degustava com os olhos. Cheirava. Ficava sentada olhando para ela. Eu a desenhava e ia, cuidadosamente, molhando o lápis vermelho na língua com a missão de obter o mesmo brilho no papel. Dormia com ela e sonhava com seu sabor. Gil ficou um tequinho enciumado, pois nada mais me interessava, só queria cuidar dela, lhe dar muito lustro com um paninho. Aposentei até a velha enceradeira.
- Vamos cortar em pedaços e comer? – perguntava meu pai.
- Você pode me dar outra depois? – queria saber.
- Você poderá ir buscá-las lá – me acenava ele novamente com a promessa da viagem pra Espanha.
Foram dias de heróica resistência. Até que capitulei. Não tão contrariada como fazia parecer, por que também havia em mim a curiosidade de saber-lhe o gosto, de conhecê-la também por dentro. Mas para isso teria que perdê-la.
É estranho como a memória guardou uma das primeiras decisões difíceis da minha vida. Uma escolha. A primeira de muitas que faria na vida.
Não foi um momento simples. Houve um ritual. Gil teve que estar presente para ver aquilo. Minhas irmãs foram testemunhas do momento em que minha maçã foi imolada.
Do alto do Corcovado, um Cristo, redentor e curioso, entrava pela janela, querendo saber de tudo também.
Com um pequeno canivete de cabo de osso, meu pai foi partindo. Primeiro ao meio, depois nos quartos e por fim nos oitavos. Ao vê-la assim despedaçada, uma lágrima saltou-me dos olhos e meu pai, atento, filosofou:
- Para sabermos o significado da vida, cabe-nos sofrer às vezes. Temos que perder a forma e a beleza, para adquirimos experiência verdadeira. A beleza da maçã está também no seu gosto e só o definimos, depois de provar – disse-me.
Minha mágoa deu lugar ao entendimento. O gosto de choro na garganta deu lugar ao novo. Pedacinhos de polpa macia, cheios de sumo. Sabor surpresa. Inesquecível. Sabor de primeiro beijo.
Perdi a conta de quantas maçãs já passaram por mim depois desse dia, em vários lugares do mundo. Não me lembro particularmente de nenhuma delas. Gosto de maçãs ainda, mas nenhuma delas encerra em si o mistério, o aprendizado e o encanto daquela primeira.
A vida tem dessas coisas.
E é o que a torna fascinante.