21 novembro 2006

Aristóteles, um filósofo...

Aristóteles, um filósofo...
por Cristina Ruiz

A relva verdinha e nova tinha uns odores bastante característicos, misturados com o cheiro de terra, que depois da chuva ficava cheinha de brotos, naqueles dias molhados.
Ari achava muito prazeroso caminhar a esmo no grande terreiro do sítio, colhendo sementinhas, mastigando os brotinhos tenros e azedinhos dos trevos de quatro folhas - que invariavelmente tinham apenas três - provando uma ou outra migalha que parecia ser interessante, observando de canto de olho o magnífico pôr-do-sol, nas insinuantes montanhas da noroeste paulista.
Enquanto andava pra lá e pra cá, ele sentia uma coisa estranha, como uma fome que não passava. Ari não entendia bem o que era saudade, mas sabia que algo lhe faltava, e nessa angústia, ia ciscando, ciscando...

Ari era um peru. Todos sabiam que ele era um peru e na verdade quase ninguém sabia que ele se chamava Ari, só a pequena e loira Sophia, uma graciosa garotinha de seis anos e olhos azuis, que vivia com os pais numa casa pintada de amarelo, atrás da pequena granja.
Desde que vira aquela pequena ave com um defeitinho no pé – faltava um dedinho no pezinho direito de Ari - se apaixonou, chamou-a de Aristóteles (viu o nome num livro do pai e achou lindo) e passou a cuidar dela com muito carinho. Era por essa menininha que seu coração andava apertado. Ou melhor, pela ausência dela.
Os dois eram bons companheiros e viviam se divertindo pelos rincões mágicos do lugar, onde encontravam refúgio, ora na beira do grotão de um regato, ou numa velha caixa d’água abandonada, povoada de seres elementais de um plano paralelo, ora à sombra de uma grande jaqueira ou num paiol antigo, cheio de palhas de milho e galinhas poedeiras que gritavam “tofraco”.

Mas Ari, além de ser um peru e brincar grande parte do dia com a menina Sophia, adorava pensar e analisar seus pensamentos sob vários ângulos. Nos intervalos das brincadeiras, Ari pensava, pensava sobre algumas coisas que o intrigavam. Talvez fosse o paradigma do nome que lhe dera Sophia.
Nada o intrigava mais do que entender o sentido da vida, principalmente a dele.

- Sophia, me assusta um pouco essa época do ano, pois todos os perus gordos vão embora e não voltam – perguntava ele com o olhar longe, balançando nas nuvens.
- Meu pai diz que eles vão embora por causa do Natal – respondia a garotinha prontamente.
- É! Dizem que o Natal é o grande momento da vida de um peru, mas eu preciso descobrir por que. Não acredito que a gente nasce, come, come, come e depois vai pro Natal e não volta mais... – concluía a ave.
- É verdade... – respondia uma Sophia perdida em pensamentos – temos que descobrir.
- Mais eu do que você, pois se algo acontece com alguém no Natal, é com os perus, e não com menininhas loiras de seis anos. - matutava Ari, resmungando para si mesmo.

Mas a vida dele não era só ciscar.
Ari olhava o longe, o além, o mais pra lá de onde a vista alcançava.
Ele cismava também. E quando cismava, filosofava...

- Todos os perus, por natureza, têm o desejo de conhecer sobre tudo? Conhecer deve ser o grande sentido da vida. Será? – e havia um “que” de auto-convencimento inglório nele.
Ari olhava o céu...
- Deve haver algo além daqui. Meu pensamento deve ser uma coisa que não acaba com a morte. Há algo em mim que deverá pulsar pela eternidade. Se nossa essência não permanecer, pra que serve essa vida? O que fazemos aqui? – angustiava-se.
E Ari pensava e pensava. E por mais que pensasse, as respostas não o alcançavam.
Os outros perus andavam pra lá e pra cá, comendo, comendo, comendo. Nem ligavam para o que Ari pensava. Eles, de certo não pensavam. Eles, na verdade, nem sabiam que não pensavam.

- O que é o Natal? Para que existe o Natal? – continuava o pobre peru em suas investigações.


* * *

Na nuvem de poeira que se levantou no estradão, ele viu surgir a caminhonete de Pedro Hernandez, fazendo um barulhão com seu motor diesel fumacento. De repente, de dentro da caminhonete desceu Sophia, com os cabelos esvoaçando soltos, o vestidinho que levantava quando ela corria. E ela corria e corria. Corria para ele.
- Ari! Ari!! Aristóteles??? - ofegante – Eu cheguei... eu voltei....

Ela sabia que ele estava sorrindo, embora ele sentisse que seu sorriso não era dos mais abertos. Ele bateu as asas, abriu seu leque e fez o “glu-glu” mais espalhafatoso que conseguiu. Estava feliz... Sophia voltara.
Ela o abraçou e beijou rapidamente e sentou-se ao seu lado, ofegante - tinha pressa - tirando de dentro do vestido um papel dobrado. Ele observava, atento. Ela foi abrindo o papel enquanto explicava.
- Tava lá na casa da ”vó” Lolita... aí, olhando uma revista... achei essa foto... e é o Natal... minha mãe e minha “vó” estavam falando sobre isso... é horrível!!!!
Ari arregalou os olhos de peru (ou pensou ter arregalado) e viu a foto de uma linda mesa, toda enfeitada com velas vermelhas, flores, laços, pratos e copos muito chiques e no meio de tudo isso, um imenso peru!!! Um peru peladinho, com botinhas brancas de papel recortado, muito brilhante... e morto!!!
Suas pernas fraquejaram. Seus olhos ficaram turvos e veio uma dor de cabeça imediata. Perus desmaiam? - pensou.
Então era isso o Natal??? Era para isso que os perus se preparavam tanto? Comiam tanto? Que horror!!! Ele estava transtornado. Estava sem chão.
Sophia tinha lágrimas nos olhos.
- Minha mãe tava falando de você pra minha “vó”. – falou triste – ela disse que vai levar você pro Natal.
- Eu???? Mas eu sou tão magrinho!!! Sou tão novinho!!! Sou manco, ó!!! – mostrando o pezinho defeituoso. Nem consegui aprender tudo o que quero ainda. – gritou o pobre peru tomado pelo pânico das evidências - Ai, meu Deus!! (será que existe um deus-peru?) Não quero, Sophia!!! Não quero ficar peladinho na mesa!!!!
- Eu também não quero!!!. Não vou deixar!! – falou a menina, assustada com a possibilidade.
Ari caminhou um pouco e de repente, estoicamente levantou a cabeça e anunciou:
- Tenho que fugir!!! Não vou desperdiçar a minha vida e minhas esperanças, sendo servido como prato principal numa noite em que a maioria das pessoas nem compreende bem o sentido de se estar lá. – gritou furioso
Sophia reagiu rapidamente e pediu que ele tivesse paciência, que à noite ela daria um jeito.
- Fica quieto! A gente dá um jeito. Vai fugir coisa nenhuma!!
Mas ele passou o resto da tarde amuado. A lembrança da foto o agoniava. Dava-lhe engulhos. Perdeu o apetite pelo cisco diurno e ficou sentado embaixo de uma mangueira, muito deprimido. “Seria o peru da foto algum conhecido seu? Um parente?” – a foto o torturava.
- Por que tinham que comer peru no tal do Natal? Por que não comem alface, lingüiça, mortadela, abóboras, laranjas, que são tantas, chester, que ninguém sabe bem que ave é? Por que tem que ser peru? Isso só pode ser coisa de americano sonso, com o seu badalado Dia de Ação de Graças – tinha ouvido o pai de Sophia falar sobre isso, tempos atrás. “Graças para quem? Para o peru não era, com certeza!!” – pensava cheio de raiva e medo.
Mas também podia ser coisa de “marketeiro” que resolveu fazer do peru o bode expiatório das vendas de Natal e por causa disso, nós perus é que vamos pagar o pato?? – ruminava com seus botões. (botões??)

Ari saiu andando pelo sítio. Passou distraído pelo lindo e imponente cavalo tordilho espanhol que estava sendo casqueado, bastante contrariado e reclamando indignado, de suas vicissitudes, suspirando um relincho meio ibérico e sapateando em estilo andaluz.
- Calma D. Juan!! Sua vida é mansa. Nunca vi um cavalo servido em meio a outras iguarias, com botinhas de papel recortadas por algum decorador desgovernado. – falava com ironia – no máximo precisa se esforçar para dar belos passos, exibindo-se.
Passou pelas vacas sonolentas, as galinhas, os porcos. Parece que nenhum deles compartilhava a sua preocupação com o Natal.

* * *

Sophia andava de um lado para o outro dentro da casa. Pegava cobertas, passava com pequenos potes, abria e fechava os armários da cozinha. Mercedes, sua mãe, chamava por ela, ela respondia rápido – Tô brincando de casinha!!!
E continuava na sua lida, com muita dedicação.

Já ia alta a lua, brilhando nos olhos lacrimejantes de Ari, quando as luzes da casa se apagaram. Ari estava diluído em seus pensamentos filosóficos, no momento em que a janela do quarto de Sophia se abriu bem devagarinho. Ele viu os cabelos loiros brilharem a luz do luar e sentiu uma doçura invadir-lhe.
- Ari! Vem cá!! Depressa... – sussurrou ela, entre o farfalhar das folhas da dama-da-noite, que insistia em perfumar a escuridão de verão.
Ari se aproximou, entre desconfiado e ansioso e... záz!!! Sophia o agarrou e levantou-o no ar, fazendo-o pular para dentro do quarto dela, onde o aconchegou num ninho fofo, dentro do armário, pondo ao seu lado um pote com sementes e outro com água.

- Fica bem quietinho aí!! Não faz bagunça, senão a mamãe te acha. Eu preciso de tempo pra pensar. – pediu ela com carinho.

E ele ficou quietinho, embrulhadinho num edredon de penas de ganso – “Pobres gansos...” - pensou – “deve ter doído isso”. E ele sonhou... Sonhou que voava e que havia uma luz. E que tudo era muito mais leve, as coisas aconteciam num piscar do pensamento, não havia dor, nem medos. Ele sabia e sentia coisas diferentes. Do alto de seu vôo viu Sophia deitada em sua caminha e ele, isso mesmo, ele próprio escondido atrás da porta entreaberta do armário. Via e ouvia coisas diferentes e o sonho lhe trouxe uma coragem, um conforto, como se algo mais poderoso o tivesse invadido, tomando-lhe conta. Ari descobriu-se eterno.

* * *

O dia amanheceu, Sophia saiu do quarto, depois de lhe fazer muitas recomendações de comportamento. E ele ficou lá, quieto, acompanhado de seus pensamentos. “Por que não sentia a mesma alegria dos outros perus ao serem escolhidos para o Natal?” – questionava-se. Talvez eles fossem mais heróicos ao encararem seu destino com galhardia (ou seria pura resignação de ignorantes?)
Sophia, em sua inteligência pueril, começou a fazer uma campanha junto à sua mãe, que cuidava com presteza dos afazeres da festa da noite seguinte.

- Mamãe, que que a gente vai comer na janta de Natal? Já pensou que desta vez a gente pode fazer um monte de coisas diferentes? – perguntou de forma displicente
- Como assim “diferente”, filhota? E não é “janta”, é Ceia de Natal – respondeu, automaticamente, batendo muitas claras em neve, para um doce de damascos.
- Ahhh, mãezinha, você cozinha tão bem!!! Pode fazer tanta coisa gostosa... Precisa ser sempre igual?? Não agüento mais comer farofa com coisinhas fritas, arroz com creme e aquelas frutinhas pretas, torta de frango, pernil assado e peru com molho. Todo ano é igual, mãe!! – discursou a pequena menina, na sua estratégia.
- Como assim “todo ano é igual”, Sophia? – perguntou, surpresa – Você só tem seis anos. E com certeza só se lembra do Natal do ano passado, se lembrar – completou rindo.

- Mas eu lembro bastante – respondeu a menina, um pouco aturdida, sem, no entanto, se deixar flagrar – e sei muito bem do que que eu não gosto.
- E do que não gosta, Sophia? – perguntou uma mãe amorosa
- Não gosto de peru!!! Aliás, eu odeio peru, mamãe. – respondeu resoluta.

Olhando pela janela, sentiu os olhos arderem com as lágrimas de fogo, quando viu Gonçalo, o capataz, chegar carregando um garrafão de aguardente. Sabia que estava apostando alto, mas tinha que tentar de tudo.

- Faz um peixe na brasa, mamãe!!! - adiantou-se - O Gonçalo pesca muito bem, eu nunca pego nada e ele enche o cesto dele de tilápia. Pode trazer um peixe bem grande do rio!!
- Sophia, eu não estou entendendo...
- Dona Mercedes – cortou-a Gonçalo agitado – o peru sumiu!!! O peru manquitola, que a senhora mandou embebedar, desapareceu!! Já revirei o terreiro todo...
Sophia aproveitou e desapareceu da frente dos dois, pulverizando-se na onda de assombro e dúvida que invadiu a mãe e o capataz. E foi ficar bem quieta no quarto, cuidando de Ari, que estava cada vez mais desatinado.

* * *

A mãe entrou no quarto com aquele olhar misterioso que só as mães sabem ter. Estava séria, olhando para a menina e tinha nas mãos um recorte de revista amassado. Sentou-se na cama e abraçou a pequena Sophia, que se desmanchou em lágrimas, implorando pela vida do indefeso amigo. Olhando firme para a menina disse que ia levar Aristóteles - Pois o destino de cada um deve cumprir-se em seu tempo – murmurou. Dizendo isso, levantou-se resoluta, pegou a ave de dentro do armário, até com um certo carinho, teria percebido Sophia, se os olhos não estivessem tão marejados, entregando-a para o capataz, que esperava com o garrafão de cachaça.
- Mamãe!! Mamãe!! Não faz isso!! Ele é o meu melhor amigo... – implorou baixinho, enquanto ouvia a porta se fechar.
A menina chorou muito antes de adormecer um sono úmido, pedindo ao Papai Noel que lhe concedesse um único desejo de Natal.

* * *

Sophia chegou na casa da avó, de vestido e sapatos novos, cabelos com presilhas de strass, e docemente perfumada . Estava toda linda, não fosse pelos olhos ainda vermelhos, de horas seguidas de um pranto silencioso e cheio de saudade.
As luzinhas de Natal presas em volta do arco da sala brilhavam em muitas cores. As bolas douradas refletiam uma imagem sua distorcida e bem mais gorducha do que a real. Sophia gostou de ver o rosto ovalado, seus cabelos numa moldura menor e a pele num tom estranho de ouro velho.
Mercedes entrou na sala, cantando uma alegre música espanhola cadenciada por agudas castanholas, que tocava na vitrola do pai, como em todos os Natais, desde que se lembrava. Trazia uma travessa com um grande peixe assado, todo adornado com batatas e brócolis. Olhou para Sophia e gritou lá pra dentro:
- Mãe!!! Traz o peru, que já estão todos aqui!!!
Sophia fechou os olhos, como que para fugir da cena cruel que a esperava, duas lágrimas quentes rolaram pela face rosada e do fundo do escuro de suas pálpebras ouviu ao longe a voz da avó Lolita:
- Vem! Vem, logo! Corre! A festa já vai começar!!!
Por trás de uma Mercedes sorridente, laço de fita amarrado no pescoço, um gorrinho de Papai Noel na cabeça e cheio de uma empáfia dos que estão sossegados e felizes, vinha mancando, correndo rapidinho para dentro da sala, um peru curioso alegre, curtindo uma linda noite de Natal, junto àquela alegre família espanhola que ia jantar peixe na brasa, castanhas assadas, arroz simples, gelatina rosa, frutas e sorvete.
Jantar, não! Ceiar...

- O destino de cada um deve cumprir-se e o destino do Aristóteles não é ser um Peru de Natal – disse a mãe sorrindo para Sophia.
- Obrigada Papai Noel! - lembrou-se de sussurrar abraçada à querida ave que sorria, realmente sorria.

CRISTINA RUIZ

CRISTINA RUIZ
Cristina Hernandez Ruiz Trevisan é natural de São Paulo, mas não esconde a forte influência ibérica em sua arte e em seu temperamento irrequieto. Desde idade muito tenra apaixonou-se pela leitura e pelo desenho, tornando-se artista plástica e designer de interiores. Nos últimos anos, tem dado vazão à sua força criativa por meio das letras, usando-as tal como usa as cores, em vigorosas pinceladas que nos falam à alma.