26 dezembro 2006

Nebulosa de Estrelas - parte II (final)

Nebulosa de Estrelas - parte II (final)
Numa tarde de trabalho voluntário, Valdete era a sua vizinha de posto. Quando ela se levantou para ir ao banheiro, deixou cair uma revista de fotos de posições sexuais.
- Valdeeeeeete!!! - arregalou os olhos - O que é isso???
- Shhhhiiiiiuuu!!! Calma – disse guardando rapidamente – Depois explico. Se souberem aqui, me expulsam.
Ficou agitada e curiosa.
Durante o cafezinho, Valdete, mostrou-lhe a revista. Além das centenas de fotos eróticas, tinha depoimentos reais de experiências sexuais, entrevistas com sexólogos, opinião de homens e mulheres. Um tratado sobre os prazeres do sexo. Valdete então, pôs-se a elogiar a sua maneira de atender as pessoas, sua delicadeza e atenção, deixando-a confortável e agradecida. Falou sobre o caso do orgasmo. Ela contou um pouco da vida, das frustrações, enquanto comia biscoitos light. Sem muitos rodeios, a amiga lhe propôs um posto como atendente num tele-sexo. Trabalhava nisso há cinco anos.
-É trabalho sério e honesto – explicou – lá também ajudamos pessoas com problemas. E o salário é ótimo.
Ela cismou. Ponderou. Analisou. E aceitou.
Se rebatizou Graciela e remoçou vinte e dois anos. Sua voz tornou-se mais sensual, um tantinho rouca. Um leve sotaque espanhol, treinado nos programas da TV a cabo. Encheu-se de suspiros e ais. Risinhos e gemidos.
A mudança física também se deu. Cortou os cabelos, fez luzes, foi malhar, emagreceu. Usava Channel n° 5 e passava batom vermelho com bastante gloss, para encarnar a personagem.
Baton, a poderosa arma que a transformava de mulher sem graça e simples em fêmea pronta para dominar o mundo e o que dele viesse.
Qual a estranha relação das mulheres com o batom?
Trabalhava cinco horas, todos os dias.
Falava com três, cinco, dez pessoas por tarde. Homens e mulheres. Jovens e idosos. Podia exacerbar a libido. Externava seus sonhos mais proibidos. Sussurrava fantasias. Transgrediu. Desabrochou.
Sexo outra vez!! Direito ao gozo e ao prazer. Podia ser mais feliz que todos os clientes. Estava se ajudando. Revivendo. Apaixonada.
No carro, final da tarde dizia em voz alta para si mesma e para Deus: ... por pensamentos, palavras, atos e omissões, por minha culpa, minha tão grande culpa... Perdoai-me, Senhor!! Ocultava providencialmente o “...não quero mais pecar.”
Recobrou o sentido da vida, numa paralela cheia de emoções. Numa nebulosa de estrelas.
- Hoje não dá, Rose. Tenho compromisso.
- Lu, você nunca pode vir! Que tanto compromisso cê tem? Você está estranha.... É algo que não quer me contar, Lu?
- Impressão sua, amiga! Eu sou a mesma. Te juro!!
O salário do tele-sexo ela guardava todinho na poupança. Não era dinheiro que importava. Isso ela tinha em suficiência. Esse dinheiro lhe trazia independência, é verdade. Dinheiro de marido é sofrido, humilhante. Mas o que lhe importava era a energia criativa do prazer e a alegria orgástica de estar viva.
Suas manhãs tornaram-se mais agitadas. Acordava cedo para caminhar. Dispensou o terapeuta. Foi fazer tai-chi-chuan. Leu o kama-sutra ilustrado. Aprendeu pompoarismo. Dança flamenca. Estudou história grega, egípcia, romana.
Descobriu a origem do baton, na sensualidade da lenda de Afrodite. A púrpura de Tyr. Sangue de ovelhas, misturado a óleos essenciais. Amoras. Vinho mosto. As mulheres da antigüidade já mantinham uma profunda relação com o poder que emanava do ato de colorir os lábios.
Às vezes ainda lhe batia a dúvida sobre estar ou não pecando. O que diriam a mãe e a sogra? Seria apedrejada como adúltera?
Nunca!!! A carne estava intacta. Não eram prazeres da carne. Eram delícias da mente. Eram fantasias. Embora as entranhas lhe tremessem, úmidas.
Foi se libertando do pecado. Foi se afastando do mal. Foi se importando cada vez menos com a indiferença dos seus. Celebrou o matrimônio consigo mesma e transmutou. Libertou-se das leis.
Tornou-se una. Adquiriu brilho e opinião. Passou a questionar os dogmas do cotidiano e deixar pra lá os chiliques dos outros. Caminhava nas nuvens.

Uma noite o marido a enxergou. Estreava uma camisola linda.
- Está diferente, você!
- É...
- Não sei bem o que... cortou o cabelo? – perguntou indeciso.
- Foi...
- Tá mais peituda?
- Não...
- Não sei o que houve, mas que tá diferente, tá!!
- Pode ser...
Virou-se e dormiu. Queria ir para o sonho. Não queria mais encarar a sua realidade insossa.
Tudo o que lhe dava vida e alegria estava do outro lado da linha.
Queria estar envolta nas brumas de sua vida oculta, onde era senhora de seus prazeres.
O marido quedou-se olhando a silhueta de seu corpo na penumbra, estranho e diferente agora. Sentiu-se excluído de alguma forma. O sono roubou-lhe o raciocínio. Depois pensaria nisso.
Não deu tempo.
- Juca! – sussurrou amanhecendo.
- Hum? – sonolento.
- Quero o divórcio! – e riu um risinho de nervoso.
- Que é isso, Lu? Tá delirando, menina? – falou sorrindo. – Brincadeira besta.
- Mas era melhor...
- Gente de bem não se divorcia. – cortou-a – assunto encerrado, mulher.
- Mas a gente mal se fala...
- Esquece. O que os outros vão dizer de mim? Nem pensar...
- Os outros? E eu??
- É! Os outros. Vão achar que não dou conta do recado. Que que tem você?
- E dá conta? – ironizou ela.
- Mulher direita não reclama dessas coisas. Não fica bem.
Sorriu marota, como se tudo não tivesse passado de uma brincadeira. Mas ele ficou olhando para ela de lado, quando ela entrou no banheiro. Não reconhecia a mulher. Algo nela estava diferente.
Olhou-se no espelho cúmplice de si mesma. Esboçou um sorriso que teve algo de maquiavélico.
Ela decidira naquele instante que todas as suas mentiras seriam, a partir de agora, verdades a realizar. Sabia exatamente onde ir buscar a sua luz.
Saiu resoluta, passou no banco, sacou todo o dinheiro da poupança. Um ano delicioso de trabalho. Tinha muito o que fazer naquele dia.
À noite o marido chegou meio ressabiado, tentando alcançá-la dentro de seu novo mundo.
- Estou pensando em comprar um pacote turístico pra Jericoacoara – disse inseguro – segunda lua-de-mel. Que você acha?
Ela o olhou num misto de pena e gratidão.
- Não vai dar, Juca. Vou dar um pulinho na Grécia semana que vem.
E ele soube que era tarde demais.

4 comentários:

Anônimo disse...

Acabei de ler os contos escritos por Cristina que nos presenteia com uma narrativa bastante intrigante e que nos faz ir, quase que sem piscar os olhos ao final do tema. Sei do quanto Cristina é capaz e sei o quanto ainda seremos surpreendidos por ela, por sua inteligência e criatividade. PARABÉNS e SUCESSO é o que desejo.
Lelena

Anônimo disse...

A autora não só retratou a vida de uma personagem chamada Lúcia, na faixa dos 40 ou 50 anos, mas a situação de boa parte das mulheres brasileiras, que dedicam suas vidas aos lares e a criação de filhos, anulando sexualidade e carreira profissional, tornando-se, enfim, pessoas infelizes e oprimidas. O mais interessante, porém, foi a reviravolta da personagem central, já que priorizou de forma muito corajosa seus desejos, sua liberdade, sua independência financeira.
A discussão sobre o mundo feminino, como aconteceu em "Nebulosa de Estrelas", sempre será valiosa, pois é uma forma de escritores, estudiosos e formadores de opinião retratarem a transformação que a Mulher vem sofrendo, nas últimas décadas.
A demonstração dessa transformação, independente do veículo, é a principal arma contra o machismo, que tem grande força no Brasil, e que ainda, intensamente velado, massacra milhares e milhares de mulheres, que continuam submissas a maridos, pais, irmãos e empregadores. Somente através do uso da palavra, seja através das telenovelas, filmes, romances, documentários, contos, artigos acadêmicos ou crônicas, poderemos ter um país igual para Homens e Mulheres. Nesse dia, a violência e o preconceito contra as Mulheres será uma página virada na história do Brasil.
A escritora, enfim, não só deixa uma significante e inteligente história de vida, mas levanta uma bandeira contra a submissão, contra a padronização e contra o machismo.
Parabéns Cristina! És uma escritora espetacular!

Anônimo disse...

Dona Cristina,
Mas você está demais!!! Adorei a virada de mesa da D. Lu - naturalmente foi redescobrindo a vida e percebeu que aquele banana do marido nada mais tinha a ver com ela.
Linguagem fluente - rica em detalhes e sem perder o fôlego. Cheia de humor, me fez rir sozinho muitas vezes. Simplesmente adorei.
A do Sr. Careca também é ótima - biográfica, claro. Fiquei imaginando você menina na mão dessas freiras, aí, aí, aí...
Não sabia desses seus dons... Quando nos vermos, se tiver alguém do meu lado, por favor, avisa tá?
Parabéns!!!
Grande beijo do Giba.

Anônimo disse...

Querida Cristina.

Gostei muito dessa história, principalmente da personagem. Ela deu um ar de romântica trágica digna daquelas que são mesmo imprevisíveis, de mudanças inesperadas e não menos loucas.
Na mudança ocorrida a ela, você usou a palavra "incidente" e eu me lembrei do conceito do célebre escritor Henry James, que fala que a natureza do personagem literário se mostra como a “determinação de um incidente”, assim como o “incidente se dá pela iluminação de um personagem”. E me pareceu exatamente isto que aconteceu à personagem na história. (Se interessar sobre o assunto, escrevi um artigo que fala sobre os fatos que criam uma história. Está no site Universia cujo link é http://www.universia.com.br/html/materia/materia_jiea.html)
Espero poder ler outras contos seus pois você tem muita qualidade em conduzir personagens e narrativas. Sua hora chegou e espero que o sucesso venha na mesma medida que prova o seu talento.
Que a brisa sopre nesse leque andaluz!
Felicidades neste ano novo.
Bjs
Felipe