18 dezembro 2006

Sr. Careca

Não gosto de lugares escuros.
Morava num sobrado grande em São Paulo e nunca ia sozinha até os quartos na parte de cima da casa e muito menos até a cozinha tarde da noite.Era menina miúda ainda quando comecei a ver mais gente à minha volta, do que havia realmente por perto. Gente de cor estranha, meio leve, meio diáfana, que me trazia uma sensação estranha ao estômago e um cheiro às narinas, às vezes como jasmins, às vezes terra molhada, e por aí seguia. Não sentia medo deles, mas uma angústia estranha que dilacerava a garganta. Uma vontade infinita de chorar, às vezes de sorrir, às vezes de falar...Na inocência da minha pequenez, dizia aos adultos que havia mais pessoas ali. Ninguém me dava ouvidos.
- Está de imaginação solta, essa menina – dizia meu pai.- Invencionices de criança – reclamava uma tia- É muito levada da breca – comentava uma vizinha.
Sempre fui criativa e imaginativa, por isso chegava a duvidar de mim mesma. Mas, na certeza, olhava as pessoas de soslaio, como a inocentar-lhes a ignorância.Um dia desenhei numa lousa e descrevi pra minha mãe uma mulher de mãos dadas com um menino.
– Eles usam lençóis - disse - A mulher me diz umas coisas.
- Alma penada - dizia mamãe muito católica e assustada – reza, que some.
- Não! São pessoas que querem conversar. O menino é bonzinho.
- Pois nós não podemos ouvi-los. Nem vê-los. Reza logo!!!
- Podemos sim. Eu posso – afirmava categórica e um tanto infeliz.
Mas a essa altura a minha mãe já tinha me deixado falando sozinha, por falta de argumentos, medo ou impaciência com tais assuntos; nunca soube bem o motivo.À noite, na hora de rezar para dormir, eu insistia em dizer que pessoas cuidavam de mim o tempo todo.Minha mãe cortava o tema, já bastante irritada e meio brava. Dizia alguma jaculatória em voz alta, me beijava e ia dormir. Eu olhava para a figura do Anjo de gesso, iluminado, sobre a porta do meu quarto. Tão indefeso, o pobre...
Fui crescendo e calei sobre o assunto. Chato isso de falar coisas que ninguém queria ouvir.As pessoas estranhas continuavam indo e vindo. N unca os mesmos. Sempre diferentes; de muitas épocas, tamanho, cores e sentimentos variados.Me mandaram estudar num colégio de freiras, já que minha mãe tinha certeza de que a fé seria o fio condutor de uma vida inteira. Já nem me lembrava das histórias de antes ou fingia não me lembrar.Aprendi muitas coisas no colégio, muitos dogmas e preceitos. Descobri a tal fé, coisa um tanto distorcida, pra minha maneira de ser. Era voluntariosa e inquisidora, fazia perguntas proibidas. Achava tudo aquilo tão antiquado e sem sentido.- Por que temos que ficar sem comer para poder comungar?
- Quem garante que Jesus não se casou e não teve filhos?
- Por que quase todos os santos são italianos?
Por aí iam minhas dúvidas e por causa disso sempre fui olhada com reserva por todos no colégio. As estudantes internas não tinham autorização para conversar comigo. O padre vivia me abençoando com o sinal da cruz e me dava as respostas todas iguais:
- Quieta, Ruiz!
Tinha no colégio duas amigas inseparáveis – Suely e Marina - com quem dividia sentimentos, maneiras de pensar e muitas traquinagens. Só não dividíamos os castigos e o estilo das contas bancárias dos pais, porque elas duas eram ricas, mas sabíamos o que era ser a “ovelha negra”, para as freiras francesas, tão cheias de salameleques.Como os meus pais não tinham muito dinheiro, nada me facilitava a vida no colégio. Detestava matemática e odiava a Dª Odete, professora rude e mal-humorada; solteirona, que me fazia acreditar que a matemática tinha sido inventada pelos gregos só pra torturar a gente. Todo final de ano ficava de segunda época precisando tirar nada menos que dez. Às vezes passava de ano, às vezes não. Amava história geral e a professora, Dª Letícia. Gostava de português. Mas o que eu mais gostava mesmo era desenhar. Muitas vezes fui pega desenhando em aula e o chão entre a sala de aula e a diretoria já estava patinado, de tantas vezes que tinha que ir até lá tomar umas broncas. Entrava sempre com o olhar firme, disfarçando a timidez e o medo, mas não achava justo ser castigada por fazer algo que vinha lá de dentro e me dava tanto prazer. Eu rebatia as broncas e as freiras chamavam meus pais.
Uma noite, durante uma dessas reuniões de notas e comportamento, da qual eu não podia e nem queria participar, fui caminhar pelo colégio, já mergulhado na penumbra. Ao me aproximar da ala residencial, disse para a noviça que tomava conta da porta da clausura,que estava vendo uma pessoa ali ao lado dela.
- Irmã, tem uma senhora ao seu lado. Ela está usando um xale florido e segurando uma tigela com água. – descrevi com naturalidade.
- Que maluquices estás a dizer tu? - perguntou a freirinha com forte acento gaúcho.
- Ela tá dizendo que o seu pai, que morreu de maleita, tá muito bem e feliz, no céu. Ela diz que ele tá libertando a senhora da promessa que ele fez. A senhora não precisa ser freira, se não tiver vontade.– concluí.
- Quem te disse essas coisas, Ruiz? Como podes saber disso? - falou a coitada quase gritando, aturdida.
- Essa mulher... – disse eu, apontado para o nada que a pobre irmã enxergava. – Acho que é sua avó. - E fui-me embora correndo antes que dessem por minha falta na saleta da reunião.

Na manhã seguinte já fui logo tirada da fila de entrada, enquanto cantava o Hino Nacional.
- A Madre quer falar com você. – avisou-me uma das internas, ressabiada.
Suspirei, resignada, cansada de tanta bronca e fui. Estava apreensiva, mas de consciência limpa. Sabia que não tinha aprontado nenhuma doidice, nem sozinha, nem junto com as amigas.
- Por que inventas tantas estórias? A quem queres assustar? – perguntou a madre – a pobre noviça não dormiu por toda a noite.
A madre não estava brava. Indecisa entre incrédula e assustada, talvez por ter que tratar de um assunto que não dominava.
- Mas eu não inventei, Madre. Eu vi aquela senhora e repeti o que ela dizia – afirmei.
- Preste bastante atenção, Ruiz. A partir de hoje, todas as manhãs, vais confessar com o padre Francisco, antes da primeira aula. Deves lhe contar se vires alguém que não pertence a este mundo, está entendendo?
- Por que ? – perguntei, irreverente. – O padre também vê essa gente estranha?
- Não!!! - persignou-se, aflita - Porquê Deus não quer que a gente fale com quem já morreu, entendeu? É proibido. Só vamos nos encontrar no dia do Juízo Final – disse a freira sem nenhuma convicção. – depois de confessar, faz a tua penitência com fé e comunga com Jesus.
- Todos os dias? - perguntei eu, já aborrecida com aquela história toda.-
Sim!! Isso vai fazer com que você não possa mais ver ninguém. – disse.
Passou a mão docemente na minha cabeça, tentando me dar conforto. Ou confortar-se a si própria, nunca soube bem.
– Agora vai pra aula de matemática. – disse por fim.Levantei-me e quase lhe pedi um castigo, só para não ter que ir para a aula tão detestada.
A partir desse dia fiquei marcada pelas freiras. Não era uma atitude declarada, mas nunca me davam nada interessante para fazer. Nunca fui escolhida a noiva da quadrilha, não era titular no time de voley, por mais que treinasse.
– É muito baixinha – desculpavam-se.
Não tinha papel de destaque na peça de teatro anual, não ficava na fila da frente do coral da Dª Dulce, onde era primeira voz, pois mesmo sendo baixinha pro voley, me escondiam atrás. Não ganhava medalhas na Feira de Ciências. Meu único destaque era levar a culpa de tudo. Tudo!Se havia bagunça na sala de aula num dos intervalos., lá ia eu responder pela balbúrdia. Se saía briga na aula de ginástica, se faziam alguma arte ou molecagem na hora do recreio, lá ia eu de castigo.
Quando já não sabiam mais o que fazer para controlar a minha insolência, inventaram que o castigo agora era ir para um quarto pequeno e escuro, cravado no entremeio de dois andares, num vão de escada., no prédio velho do colégio.
Nesse quarto ficavam guardados antigos troféus dos campeonatos ganhos pela escola. Deviam ser troféus de colocação sem nenhum destaque, 4° lugar ou mais, por que estavam empoeirados nas prateleiras; ninguém lhes dava valor algum. Conviviam na escuridão com figuras de um presépio em tamanho natural, que era montado no pátio da escola, à época do Natal e com uma gravura na parede, de um Anjo Guardião cuidando de duas criancinhas - um menino e uma menina - em busca de uma bola colorida, à beira de um precipício,.Estavam guardadas ali as bandeiras do Brasil, de São Paulo, do Colégio. Juntavam nessa sala todo tipo de velharias que me mantinham distraída, enquanto chorava de raiva por tantos castigos.Mas havia algo mais nesse quarto.Havia um morador bem estranho: um esqueleto humano pendurado num suporte de ferro; era bem antigo e dava pra ver, pelo estado de conservação, que tinha sido usado para aulas de ciências, alguns anos antes, até séculos, talvez.Na primeira vez que o vi, fiquei muito impressionada. Não gostei nada, nada daquilo. Sonhei algumas noites com ele.
Na verdade eu sabia que o que as freiras queriam mesmo, era me assustar, dar um jeito para que eu me tornasse menos problemática. Mais submissa e obediente.Eu ia para esse castigo eventualmente e deixava-me ficar envolta na escuridão, no silêncio do lugar. Não era a melhor coisa do mundo ficar ali, mas eu não podia me deixar vencer por elas. Tinha que mostrar que aqueles castigos não estavam surtindo o efeito desejado.
Eu via o espírito de um homem ao lado do esqueleto. Um homem de uma época bem mais antiga. Esse homem vestia um sobretudo de lã surrado, um chapéu torto e botas enlameadas. Um homem bem triste, que não falava nada, só me olhava . Aquilo me incomodava e eu intuía que ele estava ali por causa de seus ossos, usados para expor suas entranhas e sua magreza mortis. Tomava conta de algo que lhe pertencera, o coitado.Eu o apelidei de Sr. Careca, pela lisura de seu crânio e por que não tinha coragem de lhe dar nome de gente viva.Coloquei-lhe um chapéu na cabeça. Sua feição me impressionava.- De chapéu o senhor fica melhorzinho. Parece mais saudável.Ele concordou.Certa ocasião, por causa de uma briga num jogo de vôlei, do qual eu não estava nem participando, lá fui eu desfrutar da calada companhia do Sr. Careca. Nesse dia, eu estava realmente revoltada com tanta injustiça e cisma por parte das freiras.No tédio do castigo e com a raiva que me aquecia os ânimos e o sangue, tive uma idéia terrivelmente brilhante: resolvi que ia libertar o espírito do Sr. Careca daquela prisão eterna e para isso o esqueleto não poderia mais existir. Não tive dúvidas. Fui pacientemente desmontando toda a ossada, soltando os pequenos arames que prendiam os ossos com um alicatinho que estava perdido por ali, e fui espalhando todos eles pelo quarto, distribuindo dentro das taças inúteis dos mal-sucedidos campeonatos dos Jogos da Primavera.

Não me lembro quanto tempo fiquei nessa tarefa. Mas sei que foi um extremo prazer.Com ironia ainda me dei ao trabalho de verificar se me lembrava dos nomes que havia aprendido nas aulas de ciências: falange, falanginha, falangeta, artelhos, cóccix, externo, malar, maxilar inferior, occipital, côndilo, rótula, fêmur, cúbito, rádio, etc...etc...etc...O crânio encaixei sobre um troféu alado. O chapéu meio de lado. Ficou estranho e elegante.O espírito do homem agora me sorria, um sorriso de alívio e satisfação.Nunca mais fiquei de castigo.Do colégio das freiras, não tenho saudade alguma. A fé, moldei transgênica, ao meu jeito irreverente de ser. A freirinha da clausura deixou o hábito. Do Sr. Careca, nunca mais tive notícias.

5 comentários:

Anônimo disse...

hahaha, adorei. também estoudei em colegio de freiras, e posso dizer que é complicado essa mistura de religioes que nos brasileiros temos... tambem morei em um pensionato de freiras, e uma de minhas amigas via sempre a figura d eum padre nos corredores. otimo texto, Claudia Mello

Cau Logrado disse...

Caramba! Adorei o texto!
Muito louco!
Desculpe a talvez "pergunta idiota", mas isso foi verdade?

Anônimo disse...

também gostei muito. hist´roias de mediunidade são otimas. será que vc tem mais dessas?

Anônimo disse...

Cristina, achei este teu blog pelo ragazzo di famiglia. vi que também está nos contos natalinos. parabéns. gostei demais deste texto sobre o esquartejamento do coitado do esqueleto. haha. muito bom, tua narrativa é gostosa. abraços, Anderson Leite.

Anônimo disse...

Ao descrever passagens marcantes de sua infância, em um misto de delicadeza e genialidade, a autora, em "Sr.Careca", apresenta nuanças da vida. Nuanças reais, mas decoradas por obstinação e otimismo.
Sob o ponto de vista literário fiquei surpreendido com o poder de síntese da escritora, pois reuniu em cinco páginas diversas situações dramáticas, personagens variados, cenários diversos, além de toda a carga emocional desprendida (transformação de impressões como medo e solidão em puro encantamento, doçura e aprendizagem).
Achei especialmente interessante e criativo a abordagem da espiritualidade, na infância, durante o início e o fim da narrativa.
Como sempre os textos de Cristina são caracterizados por linguagem sofisticada e esmero gramatical.
Parabéns Cristina! Adorei!