16 janeiro 2007

Dias, noites e vagalumes - IV

Parte IV
No sábado pela manhã, depois do ritual do leite no curral, nos arrumaram e enfeitaram, vestido de roda, laço de fita, sapato e meia, escovinha nas unhas pra tirar o barro das brincadeiras diárias na lama, Seiva de Alfazema nos cabelos e lá fomos todos pra cidade, na caçamba da caminhonete, que pulava feito cabrita nos buracos da longa estrada, levantando terra pra todo lado.
Tive o cuidado de guardar todos os vidros dentro de duas caixas de sapato.
A cidade era pequena, com suas casas coloridas de grandes varandas, encimadas por primaveras de várias cores. A igreja Dom Bosco e sua praça com a fonte luminosa, o grande colégio salesiano. Havia sempre uma sensação de lar, quando eu revia aquelas ruas.
- Chegamos!! – avisou minha tia – Pulem! Vamos ver a vó Maria.
- Nós não vamos na matinê? – perguntei
- Vão sim, mas é só de tarde, logo depois do almoço.
- Humm...
Entramos na casa da vó e eu fui guardar as caixas no quarto da Nãna, babá de toda a família por mais de quatro gerações. Ranzinza como só ela sabia ser.
- Que que cê tá aprontando, menina??? – grunhia – sua vó me mata se sujar a casa, heim?
- Nada – beijei seu rosto enrugado – só uma idéia iluminada.
Aproveitei o reboliço dos beijos e abraços, chamei uma das meninas e fomos correndo no bar do Mário conseguir uns sacos de papel. Com alguns tostões compramos maria-mole de coco queimado e docinhos de abóbora. Comemos depressa, para ninguém ver, senão vinha bronca; mas sempre tem um dedo-duro...
- Mãe!!! Elas tão comendo mariola!! - choramingou a chata da Marcinha, a prima mais nova.
- Mas quem deu ordem??? - o almoço tá indo pra mesa – quem não comer tudinho não vai na matinê. Raspando o prato, heim?
Fuzilei a pequena marocas, mostrando-lhe o punho fechado. Ela saiu correndo para as tias contando a ameaça e eu com cara de santa, disfarçando.
Fui para o quarto e coloquei dois vidros em cada saquinho de pão. Chamei minha irmã, duas primas e o Canivete, que tinha sido convidado para passar o dia na cidade conosco. Oportunidade rara de sair da fazenda. Tava todo arrumado, passou até Gumex no cabelo.
- Cada uma vai levar um saquinho desses para o cinema.
- Pra que? - quis saber a Nanda.
- Depois eu explico.
- Você e eu levamos dois, Cani – e entreguei os dele.
Nos levaram para o cinema.

Na década de sessenta os filmes chegavam na cidade com muitos meses de atraso. Eram poucas as sessões semanais. Uma matinê no sábado à tarde, outra no domingo pela manhã e as duas sessões de gala à noite, nos dois dias. Antes do filme havia alguma encenação teatral. Podia ser um cantor da cidade cantando músicas de ídolos da bossa-nova que nunca iriam até lá, um solilóquio de Shakespeare ou Tenesse Willams, moderno e arrojado para a época. O cinema era um ponto de encontro, com poltronas marcadas para as autoridades: prefeito, primeira-dama, delegado, padre, médicos, advogados, comerciantes e fazendeiros ricos.
O filme nessa tarde era o Professor Aloprado, do Jerry Lewis e o cinema estava cheio. Tinha gente sentada até nos corredores. Ele era sem dúvida o melhor comediante daqueles dias.
Apagaram as luzes, antes de começar o filme passou o cine-jornal do Primo Carbonari e a criançada gritando impaciente.
- Começa! Começa! Começa!
Só sossegaram quando passou um desenho mudo do Gato Felix, seguido de um episódio sépia de Flash Gordon.
Finalmente o filme. Muitas gargalhadas. Bagunça. Criança batendo o pé. Correndo. Mãe brigando com filho. Pai dando uns petelecos para amansar os capetinhas que endoidavam no escuro. Uma balbúrdia.
Com meia hora de filme, tomei a decisão.
Parte IV

- Vamos abrir os vidros e soltar agora... – sussurrei.
- Todos?? – perguntou incrédulo o pobre Canivete.
- Todos! Abre o vidro e faz eles saírem. – expliquei – depois deixem os vidros rolarem pelo chão até lá embaixo.
Fomos abrindo. Os besourinhos começaram a alçar vôo, um tanto tímidos de início, assustados por terem ficado presos.
Logo, no escuro do cinema a bioluminescência começou a fazer efeito e eles começaram a se comunicar uns com os outros. Eram centenas, milhares talvez, isso eu nunca pude saber.
Ficaram voando por toda a platéia, pousando aqui e acolá. Tinha vagalume por todos os lados.
Primeiro começou um zum-zum, depois os comentários foram aumentando. Por fim começou uma gritaria histérica, as crianças em pé nas poltronas tentando pegá-los. Mulheres e mocinhas com medo dos insetos luminosos. O delegado tentando fazer valer a sua autoridade. O padre se persignando. Uma catarse geral.
Havia na minha frente uma senhora elegante, de cabelos loiros, arrumados num penteado que mais lembrava um panetone. O cabelo todo desfiado, ajeitado com laquê, tornou-se uma armadilha feroz. Um dos pirilampos enroscou-se naquilo, foi se infiltrando lá por dentro, numa fuga desesperada. Pôs-se a piscar em sua prisão, iluminando os cabelos da mulher num tom esverdeado néon. Uma visão surrealista. Quanto mais piscava chamando outros, mais vagalumes se aproximavam e grudavam no laquê.
- Olha a cabeça dela, parece uma árvore de Natal!!! – gritou um menino.
Ninguém sabia o que fazer. Geraldo, o lanterninha corria de um lado para o outro, atarantado.
As luzes do cinema se acenderam, pararam a exibição do filme.
A criançada retomou o coro:
- Começa! Começa! Começa!
Abriram cortinas e passaram pelo menos quinze minutos espantando vagalume pra fora. Tentativa inglória, diga-se aqui.
- Traz uma bomba de flit!! – alguém gritou
- Não!! Não!! Não vão matar os vagalumes – retrucou uma outra senhora muito brava – vamos por eles para fora.
Era um tal de espantar com lenço, xale, leque. Qualquer coisa que ajudasse os besourinhos a fugir lá de dentro. E nós todos ajudando também, para evitar desconfianças.
Não houve jeito. O filme voltou, as luzes se foram e assistimos até o final com uma porção deles piscando alternadamente, deixando mais alegre a matinê.

Os vagalumes foram assunto na cidade por dias. Deu no Correio, na rádio Alvorada, o padre Rebouças falou no sermão, comentava-se nos bares, no clube e na Esquina do Pecado. O delegado ficou ensandecido querendo descobrir o autor da façanha. Nós também comentávamos o assunto, mas sabíamos que seria temeroso contarmos a verdade. Nunca podíamos prever as reações dos adultos.
Havia um pacto silencioso entre nós e nosso segredo ficou bem guardado.
Voltei à rotina tranqüila das minhas férias rurais. Sempre inventando arte e me divertindo junto com as outras crianças.
Quando a noite caía na fazenda eu queria ouvir mais histórias. Os pirilampos apareciam aos milhares, eu brincava com as outras crianças e dizia:
- Vamos catar vagalumes???
Elas me olhavam cúmplices e riam.

4 comentários:

Anônimo disse...

Interessante relato de um período muito distante dos dias atuais, onde predominava, no mundo infantil, brincadeiras salutares e acontecimentos cotidianos angelicais; na época descrita (anos 60) não havia computadores, internet, brinquedos eletrônicos, televisão, que fascinam e, ao mesmo tempo, encurtam a infância de nossas crianças, já que toda essa tecnologia incuti, ainda na mais tenra idade, que a felicidade está interligada somente a exteriorização.
Seria, então, saudável e cultural, sob uma visão estritamente genérica, o resgate dos valores e/ou costumes pueris e simplórios, tão bem estabelecidos e retratados em "Dias, Noites e Vagalumes".
Quanto ao desenrolar da narrativa achei válido a autora apresentar, apenas na parte IV, o fato dramatológico, que seria a fuga dos vagalumes, no cinema.
Acredito que Literatura seja isso mesmo: o mais importante são as impressões, as descrições minuciosas, diálogos fluentes e bem construídos, o cuidado com a caracterização das personagens. A situação dramática deve existir, mas em Literatura especializada não deve e não pode ser o único foco priorizado.
No término da leitura lembrei-me de alguns trabalhos de Machado de Assis, caracterizados pela preocupação com os detalhamentos paralelos.
Parabéns, Cristina! Linda passagem de vida!

Anônimo disse...

fui seguindo o rastro do Menu do texto, que encontrei no blog do Leonardo de Morais, e aqui chegeui. imprimi este texto para ler entre uma coisa e outroa no escritório e posso te dizer que valeu muito a pena. sinto falta de mais variedade na literatura dos dias de hoje, invadida apenas por bestsellers estrangeiros ou auto-ajuda. Gostaria demais de ler algum dos teus livros. vou procurá-los. sucesso!
Francisco Nunes

Anônimo disse...

PASSEI AQUI PARA CONHECER TEUS TEXTOS. ACHEI CRISTINA RUIZ NA WIKIPEDIA, DEPOIS DE PESQUISAR SOBRE ARGUMENTISTAS BRASILEIROS E DE PORTUGAL. FAÇO PARTE DO FÓRUM ESCRITA CRIATIVA, QUE LHE CONVIDO A CONHECER.

Anônimo disse...

Nossa Cris, passei muitas férias da minha infância nas fazendas de meu avós. Tanto minha mãe como meu pai tinham pais fazendeiros.Senti o cheirinho leite de vaca misturado com cheiro de curral, o cheiro do doce de leite da minha avó de Minas, os carrapichos que tirava dos cavalos, os carrapatos que se alojavam na gente, enfim, toda esta deliciosa e ingênua vida de fazenda tomou conta dos meus sentidos, lembranças maravilhosas!
E o episódio dos vaga-lumas no cinema? Que imagem lúdica, sensacional! Adorei, parabéns.