16 janeiro 2007

Dias, noites e vagalumes - III

Parte III
A fazenda era um lugar perigoso para criança, mas muito mágico. Os adultos viviam de olho na gente. Era cobra que aparecia na varanda: urutu-cruzeiro, caninana, cascavel, jararaca. Escorpião ou aranha que se enfiavam dentro de sapato; morcego que entrava pela janela à noite; até onça pintada circulava por aquelas bandas, ainda cheia de mata virgem na época. Tinha o poço, com suas histórias de morte e os gansos, que davam carreirão furiosos na gente, tentando bicar.
Brincávamos de tudo, o dia todo. Acabava o dia precisando ficar de molho na tina, tirando o cascão de terra. Banho frio, com sabão de coco e bucha. Banho bom.
Minha grande paixão porém eram os cavalos. Nada havia de mais lindo e majestoso do que eles, naquele lugar.
Como era terra de trabalho e produção, todos os cavalos passavam o dia muito ocupados, ora tangendo o gado, ora puxando as carroças que traziam a cana, o milho, o capim para preparar o rolão que ia pros cochos.
Certa vez ganhei um cavalo, seu nome era Farrapo, um baio castanho-claro de crina e rabo quase brancos. Animal dócil, marchador de Minas, andava só no água-choca; até em pelo e sem bridão eu podia montar. Era tranqüilo para uma menina ainda pequena e desajeitada como eu. Nunca me esqueci de seus imensos e confiantes olhos castanhos, com seus cílios claros e longos. Era meu no título de posse apenas. Coisa de tio para agradar menina de cidade grande, porque trabalhava igual a todos os outros e só ao entardecer eu podia vê-lo. Ajudava a escovar, tirava os carrapichos das patas e dos cabelos loiros, subia na cerca e jogava-lhe água pelos flancos, refrescando-o do calor e tirando-lhe as dores dos arreios e do dia de trabalho. Olhava cada pedacinho dele em busca da maldita berne que podia lhe ferir o couro. Oferecia cenoura ou tolete de cana e ele comia em minha mão, enquanto o casqueavam e ferravam.
Quando montava, saía a passear pelo pomar, em volta da casa, na alameda da porteira, pelos pastos e terreiros. Em minha imaginação estávamos, eu e ele, cavalgando para muito longe. Éramos um só corpo, um só espírito.
O casarão ficava um tantinho longe da cidade. Quase hora e meia na velha caminhonete Chevrolet verde e branca. Numa tarde quente e preguiçosa, minha mãe e minhas tias conversavam, enquanto eu admirava os castelos de nuvens que se formavam no céu de um azul impressionante.
- Estava pensando em ir até a cidade no sábado – disse minha tia – visitar o povo, levar umas frutas, manteiga e queijo. Que que cês acham?
- É uma idéia ótima – minha mãe concordou – podemos deixar as crianças na matinê da tarde com a Luzia, fazemos todas as visitas, almoçamos na sua mãe, fazemos algumas compras.
- Posso tomar sorvete depois do filme? – perguntei toda animada.
- Claro que pode!
- Vou avisar todo mundo – disse ao sair correndo.
Ir para a cidade era sempre uma novidade.

Ao anoitecer, a fazenda adquiria uma outra atmosfera, outros perfumes. Os lampiões traziam sombras aterradoras e um clima de mistério. O céu se bordava de estrelas, podia-se ver a Via Láctea, o Cruzeiro do Sul, as Três Marias, as Sete Chaves do Céu – minha constelação preferida – Marte, Vênus... e ainda buscava pelos “discos voadores”, que estavam em tantos “causos” que me contavam.
Vinha um dos violeiros tocar suas modas chorosas e todo mundo ficava ouvindo, com olhar perdido longe. Contavam estórias maravilhosas de almas penadas, sacis e corujas; falavam dos assuntos da fazenda, uma raposa que tinha matado umas galinhas, um gato do mato que pegara uma rês; fumavam seus cigarros de palha, seus pitos de fumo em rolo, davam uns tragos de uma cachaça cor de mel, que faziam no alambique da colônia e temperavam com madeira sassafrás.
Nas noites quentes o pasto se enchia de vagalumes e os cupinzeiros ficavam como lustres de cristal, cheinhos deles, pousados, piscando.
Naquela noite foi me dando umas idéias.
Assim que os adultos foram jogar truco a leite de pato eu tomei a iniciativa.
- Vamos pegar vagalume! – instruí.
- Eu sei onde tem vidro com tampa! – disse Mirela
- Caixa de sapato também serve? – perguntou Pirulito.
- Nos cupinzeiros é bem facinho - falou Canivete.
Foi missão fácil, eles estavam aos milhares. Tornou-se uma competição. Um queria pegar mais que o outro. Em pouco tempo tínhamos vários vidros cheios. Fiz uns furinhos nas tampas, para que não morressem sem ar.
- Bota uns capim pra eles comerem – sugeriu Aninha.
- É melhor botá água também – completou Zé Maria
- Não!! Água apaga a luzinha deles. – gritou uma das primas, apavorada.
Ficávamos todos na dúvida.
- Será? Por isso eles não voam na chuva?
- Claro! A luzinha é quente. Se a gente rela o dedo queima que nem fogo.
- Credo!
- Num queima, não, suas tontas. Vagalume num é taturana.
Em todo caso, ninguém relava neles.
- Pra que tanto vagalume? – quis saber a Noca.
- Nada, não. Só uma idéia que eu tive. Vamos guardar.
Passamos pela sala com os vidros escondidos sob as roupas, sem dar pio.
(continua abaixo)

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