16 janeiro 2007

Dias, noites e vagalumes - II

Parte II
No curral as vacas estavam sendo ordenhadas pelos colonos, Canivete entre eles. Canivete era o colono que mais cuidava da gente. Menino novo ainda, fazia de tudo por nós.
- Bons dias, menininhas!!! - diziam com educação sincera.
- Bons dias – respondíamos em alvoroço desencontrado.
- Eu quero o leite da malhada de marrom
- Eu quero o da preta.
- Eu também...
- Quero o da mocha – dizia eu.

Cada uma escolhia sua vaquinha, nem sei bem por qual critério.
O leite caía espumando dentro da caneca, direto da teta, espirrando. Eu bebia, quente ainda, com um sabor de capim, que o só o leite fresco tem.
Parecia fácil ordenhar. Quando ia tentar toda lampeira, não saía gota sequer. A danada da mocha se fazia de rogada e negava o alimento para as mãos inábeis. Eu ria. Canivete, paciente, enchia a caneca novamente e lá íamos nós de volta para casa comer pão sovado quentinho com manteiga nova, na enorme mesa na varanda, sob o aroma do café recém coado, dentro do bule, ao pé do fogão. O único horror do amanhecer era ter que chupar um ovo cru, de galinha ou pata, direto de sua casca, no máximo com uma pitada de sal. Coisas para deixar criança forte.

O sol logo surgia, fresco ainda, mas já prenunciando o escaldante calor com que nos brindaria no decorrer do dia.
- É uma bola de fogo trazida por Apolo em sua carruagem – dizia minha mãe.
E eu me desfazia em enlevo e magnitude, quase podendo ver o deus grego em sua missão diária e infalível. Coisa para um deus mesmo.
Os dias na fazenda nunca eram iguais. Cada um trazia uma novidade, uma lida diferente. Tínhamos horas e mais horas para dar vazão à nossa criatividade e energia. Era o dia inteiro aprontando.
Os adultos sempre cuidavam de manter as crianças ocupadas.
- Trabalho de criança é pouco, mas quem não usa é louco – dizia a velha Chica.
Na verdade eu me sentia muito importante por ter cargo e missão naquela casa. Vivia rondando pra ver se me davam algo a fazer. Podia ser qualquer coisa, de varrer o chão a ajudar fazer sabão.
Luzia me dava uma agulha e me ensinava com paciência a furar as bolhinhas de ar das lingüiças que estavam sendo feitas pelas mulheres, depois da matança de uma ou duas leitoas. Eu ficava por lá furando as tripas e ouvindo as conversas.
- O bebé da Ritinha num vingou. Teve mal de sete dias. Num deu tempo nem de batizar. Foi pagãozinho pro limbo.
- Ô tadinha! Mas também aquela menina num come. Veve de luz.
- Hoje tem bailão na roça do Formiga. O Tião vai levar nóis de trator.
No final do dia achava um espetáculo a porção de lingüiças e toicinhos pendurados no fumeiro.
Para fazer o curau e a pamonha que eu tanto adorava, ajudava a ralar a espiga – e os dedos - fazendo verter o suco cremoso do milho verde, depois separava as palhas, enchia os saquinhos, amarrava com barbante e ficava ansiosa esperando cozinhar, comendo quente e lambendo os beiços.
Desbagaçava jaca, descascava tamarindo, separava nata, batia manteiga, enformava queijo.
Só não me deixavam chegar perto da feitura dos doces. Ficava em volta olhando gulosa para os enormes tachos de cobre sobre o fogão de lenha, onde borbulhavam a goiabada cascão com seu perfume quente ou o doce de leite na sua maciez e cor incomparáveis, coisa de dar água na boca.
Podia ajudar a por nas formas, embrulhar na palha, colocar nos potes, mas da feitura não podia participar. Dos tachos voavam gotas fervendo, que onde caíam faziam queimadura feia. Ficava de colher de pau na mão, esperando um cochilo da Chica, mas que nada, a velhota era matreira e não me perdia de vista.
- Não se meta a fazer o que num pode, menina! – ralhava bondosa.
- Mas Chica, queria aprender a fazer, pra fazer na minha casa – resmungava.
- Deixa de teimosia, se eu tô fazendo tudinho procês levarem – ficava orgulhosa de ser a autora das delícias que iriam atravessar fronteiras até São Paulo, a capital que ela não fazia a menor idéia de onde ficava.
(continua abaixo)

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