29 outubro 2007

O Leque Andaluz

A porta se abriu num ranger dolorido, como se há muitos anos ali ninguém entrasse.
Tudo o que podia ver era uma penumbra grossa, que escondia um minúsculo quarto de despejo, com sua bagunça limpa e organizada, dentro das poucas possibilidades de espaço.
Na nesga de luz que se prenunciava no vão da porta, pôde vislumbrar o lindo vestido vermelho sobre a poltrona, moldura de sua redenção.
Acendeu a luz e entrou calada, muda por dentro e por fora, tamanho era o medo do futuro incerto e iminente.
Sentou-se diante da pequena mesinha de madeira patinada pelo tempo e do espelho que já tinha a prata pontilhada de orvalho acinzentado.
Alí, aos poucos foi colocando o pancake, as sombras, os pincéis, o rímel, batons e brilhos, novidades de sua bolsa, adquiridas para por em prática os cursos de auto-maquiagem que fizera recentemente. Foi juntando outras coisinhas bem femininas, perfume, um pote de gel para o cabelo, grampos, escovas e pentes. A tremedeira não passava. Será que ia tremer por toda a noite? – pensava, aflita.
As lentes de contato. Quantas noites havia treinado, ficando com elas por horas, escondida no quarto, para que os olhos se acostumassem e parassem de lacrimejar. Hoje não haveria mais lágrimas.
Duas belas rosas vermelhas de seda, saíram de suas caixinhas e foram enfeitar a mesa. Bem ao lado delas colocou o par de castanholas negras, que tantas horas de desafio lhes haviam consumido. Esta noite começara muito antes, muitos sonhos antes. Por fim surgiu ele, enigmático e poderoso, com suas pinturas florais e sua antiguidade, o leque andaluz.

Ainda podia lembrar-se da tarde preguiçosa de domingo em que o encontrou sobre o veludo puído de uma banca de pequenas antiguidades, numa feira de rua, entre velhos vidros de perfume, porta-retratos de estanho e taças de cristal. O velhinho dono da banca, todo solícito.

- Um leque antigo... Que lindo, senhor! Quanto custa? - perguntou, fascinada.
- É um leque andaluz, minha menina, muito antigo. Veio de Sevilha com a bisavó de minha esposa, há quase um século. Custa oitenta reais.
- Vou levar!! - disse pegando o leque e abrindo-o de rompante.

Ao fazer esse gesto vigoroso, sentiu como se uma onda de energia penetrasse em seu corpo. Toda sua pele se arrepiou e podia sentir seu sangue correndo nas veias. Podia quase ouvir uma música chorosa a lhe confundir os pensamentos.

Abriu os olhos e deparou-se com sua imagem no espelho. Tirou os grossos óculos que lhe escondiam os olhos negros e profundos, com cílios espessos. Aos poucos começou a se maquiar, com calma, num ritual mágico, tonalizando a pele, as maçãs do rosto, as pálpebras, os lábios, sentindo o cheiro doce das cores que lhe invadia as narinas e a alma.

- Vai ter mais de quinhentas pessoas lá fora. Será que eu vou conseguir? Minhas pernas já estão tremendo. Isto é uma loucura. – falava para sua imagem no espelho.

A voz da professora reverberava em sua mente a todo instante.

- Claro que você consegue, menina!!! Você pode! Não tenha medo. O medo é uma palavra que não consta do dicionário de uma bailarina de flamenco.

Podia ver seu rosto forte e seu tom severo, misto de incentivo e censura.

- Basta olhar para o infinito, com olhos de prazer. Profundos. Sem sorrir... Dance para a guitarra. Ela toca para você, filha. A música é o seu poder...a sua força...

- Eu sei... eu estou tentando, senhora... Eu juro!!! – dizia insegura.

- Toda mulher tem uma Carmen dentro de si, querida. Uma energia sensual, entende? E só o flamenco nos ajuda a por essa força para fora. Essa dança nos transforma... É como se toda a energia de um orgasmo nos arrebatasse.

- Eu sei, eu sei... eu vou conseguir... eu suportarei todas as dores e todos os sacrifícios – respondia ofegante, em meio a duros exercícios.

- A dança é forte, vigorosa! Olhe para as pessoas com olhos profundos, sérios, cheios de tesão, compreende o que eu quero dizer? Sinta o prazer de dançar. É uma dança para o prazer... Dance para você... para o seu prazer. – dizia a mestra segurando-lhe o queixo trêmulo.

No espelho do camarim via um rosto diferente. Uma lágrima desceu por toda a face, aquecendo o coração.

- Eu vou conseguir – sussurrou para sim mesma. – eu vou dançar para mim.

No silêncio daquele aposento, tantas lembranças lhe faziam companhia. Ia se formar no segundo grau, mas a menininha feiosa e sem graça, estava vívida em sua mente. O rosto lindo de sua mãe, a dor de se sentir um estorvo ao seu lado, tão linda e tão majestosa, sua mãe.
Pôs calmamente os cílios postiços e traçou um risco perfeito com o lápis preto, destacando ainda mais o poder daqueles olhos que as turvas lentes não deixavam ver. A mãe tão linda...
Lembrava-se dela prendendo os longos cabelos em frente à penteadeira, no gesto idêntico ao que fazia agora, prendendo os seus próprios. Cabelos presos, a mente solta.

- Como é ser linda, mamãe? – perguntava com doçura, ajeitando os óculos que insistiam em cair do pequeno nariz arrebitado.
- Não sei, Cidinha. Nunca pensei nisso. Por que a pergunta?
- Eu queria ser linda também.
- Você é, filha. Você vai ser. Um dia quem sabe, né? Com o tempo melhora... – atrapalhou-se nas palavras – Ninguém escolhe. Quando crescer muda, ou acostuma – conseguiu por fim piorar tudo, sem jeito e sem paciência.
Ela suspirava, enquanto olhava a mãe.
- Os meninos e as meninas na escola não gostam de mim, dizem que eu sou muito feia. Esses óculos... são medonhos.
- Não dá para fazer nada, Cidinha. Você puxou seu pai. Ele era quase cego....
O pai. Onde andaria seu pai. Um dia amanheceu sem ele e nunca soube o porquê.
- Mas ele me amava, com ou sem óculos. – convenceu-se.

Diante do espelho grande, podia ver o corpo bem feito, sempre escondido em largas camisetas e velhos jeans.
Foi tirando as roupas. Despindo lembranças amargas. Vestindo as esperanças. A camiseta caída no chão, exibiu seios perfeitos, flancos suaves, pernas torneadas, nuca delicada e de uma sensualidade pungente. A pele muito macia e branca, dava-lhe um certo ar marmóreo, não desses doentios, mas sim dos preciosos, sentia-se um pouco Maja Desnuda, de Goya.
O vermelho incandescente do vestido foi tingindo todo o seu ser. Como se lhe desse coragem e rebeldia, aquele tom cheio de sangue. Transfusão de personalidade.
Com um alicate de manicure, foi dilacerando o aparelho fixo, que há anos lhe 'enfeitava' os dentes, fazendo-a sentir-se sempre com restos de comida na boca. Que ódio lhe tinha.
Foi livrando-se dele com ferocidade.

Na mente a lembrança da balbúrdia e algazarra do pátio da escola, lhe confundiam os pensamentos. Lá estavam as amigas de todas as horas, sempre lhe pedindo ajuda, sempre lhe dando os trabalhos, pois elas tinham compromissos com os meninos da classe de Edificações. Viviam pelos cantos, rindo-se dela. Rindo-se das coisas que os meninos falavam dela.
Tinha vontade de desaparecer. Desde a pré-escola era o motivo de toda sorte de troça e gozação. Chamavam-na dos mais diversos apelidos.
Até e principalmente Tony, o rapaz que mais lhe fazia saltar o coração. Sempre acompanhado de Zeca, que lhe ouvia todos os absurdos e às vezes se arvorava a repreendê-lo pelas grosserias que falava dela.
- Olá, garotas!!! Vamos ao clube à tarde, pegar uma piscina?
- Olá rapazes – diziam as meninas, saracoteando, enquanto ela tentava tornar-se transparente, por detrás dos livros.
- Só as bonitas, heim? - caçoava ele – ninguém quer ter pesadelos à noite. E ria-se, irreverente, fazendo-a corar até o âmago.
Como doía aquilo. Nem sabia se era dor que passava um dia.
O vozerio deles ia se dissolvendo ao longe e ela ia enterrando-se na sua timidez. Ainda ouviu Zeca cobrar do amigo um pouco de decência.

- Tony, que maldade? !?! A coitada não merece isso... Ela é boazinha, ajuda a gente nas provas, anota a matéria para todos.

Podia ouvir a gargalhada descarada.

- E daí? É CDF. Toda CDF é horrível e ela não foge à regra, meu amigo. De mulher feia eu quero distância...(gargalhando mais alto) E ainda vieram me dizer que ela ta apaixonada por mim... Deus me defenda!!!!

- Tenho pena. As outras fazem ela de idiota. Só deixam ela por perto, por que é ela que faz todos os trabalhos e elas só levam as notas altas. Não acho isso certo...

- Não seja tonto, nem sentimental.... – e ria-se à larga.

Como a dor podia ser mais lancinante? As lágrimas lhe rolavam, irreverentes, enquanto olhava para longe dali, tentando partir. Nenhuma célula se mexia.

- A teacher disse que vai ter uma surpresa na festa de formatura. Alguém descobriu o que vai ser? - perguntou uma das amigas

- Sei lá. Deve ser uma bobagem qualquer. Uma cafonice dessas que escola arranja, só pra irritar a gente. – disse alguém, que ela já não via.

Era como se ela precisasse ouvir aquilo tudo para ter forças para o dia que viria. A raiva, ás vezes é bem positiva.

O dia chegara.

Ela se olhava intensamente no espelho, como que tentando se reconhecer na personagem diante de seus olhos. Prendeu as rosas nos cabelos. Passou um batom bem rubro. Seus lábios se tornaram imensos. Outra lágrima teimou em cair.

- Hoje ninguém vai rir. – sussurrou em meio ao choro.

- Dois minutos, Cidinha – alguém bateu na porta. – Já vão te anunciar.

- Eu vou... eu já vou... – disse com um ar de resignação e alívio.

Chegara o momento. Ela tanto lutou para isso.

Levantou-se altiva, tomou as duas castanholas nas mãos, acariciou os instrumentos e os guardou no decote, como todas as bailarinas já fizeram antes dela, através dos tempos. Pegou o leque andaluz, olhou-se mais uma vez no espelho de longe, satisfeita com o que viu naquele mundo paralelo.

- Vamos lá, menina! Chegou seu dia... olhos de prazer. Não sorria... dance!!! Seja Carmen!!!

Abrindo o leque com vigor, deliciou-se com seu som característico e novamente aquela energia poderosa tomou conta do lugar, trazendo-lhe toda a ousadia que precisava naquele instante, para enfrentar os mil olhos que a aguardavam.

Saiu do camarim, arrastando a cauda embabadada do vestido, levando consigo tantos sentimentos e tantos sonhos misturados à maquiagem. Onde estaria a pequena menina desengonçada? Bateu a porta com a força de toda a raiva que a faria renascer em vermelho.

O palco escuro, um cheiro de mofo a atordoou em meio às trevas. Sentiu a respiração de toda aquela gente a alguns metros dela. Ouviu um acorde baixinho da guitarra, o guitarrista lhe dizendo onde estava no palco, atrás do negrume.
Suspirou...
Respirou...
Inspirou...
Sentiu o corpo tremer, a pele arrepiar, algo gelado lhe percorrer a coluna. Ficou cigana. Ouviu os acordes da guitarra novamente, agora já mais fortes, estridentes. As luzes se acenderam e a revelaram ao mundo.
E ela dançou.
E dançou.
Como se todas as danças fossem só suas.
Como se todas as Espanhas estivessem no choque de suas castanholas.
Como se todas as mágoas fossem esmagadas pelos sapatear dos seus pés.
Como se todas as lágrimas houvessem secado.
Como se todos os amores tivessem enlouquecido.
E continuou dançando, para surpresa e deleite de todos.
O silêncio de quinhentas pessoas.
O sorriso da professora querida.
O susto da mãe, que nunca tivera tempo de vê-la, bela.
A inveja doentia das amigas.
A paixão avassaladora e incontrolável que tomou conta de Tony e Zeca.
Acabaram-se, então, as gargalhadas.
Depois de Carmen, os pobres rapazes nunca mais seriam os mesmos.
Segredos de um antigo Leque Andaluz.


3 comentários:

LEONARDO DE MORAES disse...

adorei!

Anônimo disse...

Uma narrativa rica e fabulosa, bela, leve e agradável. KK

Anônimo disse...

Duas abordagens extremamente importantes em "O Leque Andaluz" precisam ser destacadas:
1. A existência do "Leque Andaluz", citado no começo e no final do texto, dinamiza a narrativa. A autora teria argumento para escrever um Romance de 300 páginas a partir desse objeto-personagem; o Leque Andaluz" parece deter uma mistura de suspense e empatia.
2. Conto psicológico, onde a personagem sobrepõe-se a narrativa. É o que a literatura necessita. Vou repetir sempre: o mais importante, em literatura, não é necessariamente uma sucessão ininterrupta de fatos, mas a caracterização minuciosa de personagens, ambientes...
Parabéns Cristina! Que Leque divino! Espero que sigas meu conselho e transforme "o Leque Andaluz" em Romance, sob talvez uma nova abordagem.